Curadoria e tradução de Floriano Martins
Se a poesia não fosse uma arte sui generis e houvesse necessidade de estabelecer seu parentesco em relação a outras disciplinas, eu me atreveria a dizer ainda (nestes tempos) que a poesia é música e, de um modo mais preciso, canto. Nisto não me afasto um ápice da noção corrente. A história mostra a poesia irmanada em seu berço à arte do cantor; e mais tarde, quando já pode andar por seus próprios pés, sem o amparo da música, isto se deve a que o poeta, por força de trabalhar o idioma, o adaptou à condição musical da poesia, submetendo-o a medida, acentuação, periodicidade, correspondências.
Os poetas de meu grupo – o “grupo sem grupo”, como dizia Xavier Villaurrutia – nos comprazíamos em reconhecer-mo-nos individualmente distintos de cada um dos demais e, em conjunto, algo assim como estranhos à geração que nos havia precedido. As coisas não se davam precisamente assim. Até 1920-25 o Modernismo e, em primeiro termo, a voz potente de Darío, ainda enchia o ambiente de poderosas ressonâncias e, na verdade, fossem quais fossem nossos modelos mais próximos – Nervo, González Martínez ou López Velarde –, o grupo havia nascido para a poesia sob o signo gigante do Modernismo. E este o que foi, em sua idolatria da forma, senão uma verdadeira orgia de musicalidade?
Um movimento de reação, no sentido oposto, se inicia então. Minha geração marcou, como atitude de princípio, um certo desdém para com os recursos da prosódia, que estimava sacrílegos; porém não foi ela, imbuída como estava no gosto das belas formas, quem levou aquele desdém demasiado longe. Onde melhor se adverte esta reação é na poesia atual, mesmo que nem tanto aqui no México como em outras províncias do idioma, já que a maneira com que a taça indígena transtornou a poesia espanhola, em pleno século XVI, parece haver impresso para sempre em nossa literatura o selo inconfundível da herança clássica.
Estamos, por conseguinte – e este é o fato que desejo sublinhar –, frente a uma postura contemporânea que deseja, se não livrar-se da musicalidade, apagá-la, resistir a servi-la. A poesia dos jovens não quer que a música se apodere dela e a escravize; foge do declamatório e do operístico e se refugia em uma espécie de balbucio vagamente rítmico, no qual introduz, aqui e ali, um endecassílabo perfeito ou uma rima involuntária. Tal parece como se no esplendor das formas cristalizadas o poeta se sentisse rodeado de uma fragrância excessiva que lhe impedisse respirar a pleno pulmão. Deste modo se chega a ver como pura superfluidade tudo quanto a poesia elaborou no idioma até poder realizar-se.
Sabemos quanta sinceridade e quanta honradez se encerram nesta atitude que nos oferece uma poesia despojada de adornos desnecessários, porém não somente isto, mas também que apenas dotada de um tímido filete de voz. A poesia sairá seguramente rejuvenescida desta experiência. Convém recordar, contudo, que nada existe semelhante a uma liberdade irrestrita. Tudo está sujeito a medida, e a liberdade pode não consistir em outra coisa que o sentimento da própria possessão dentro de uma ordem estabelecida. As regras do xadrez não oprimem o jogador, mas lhe traçam uma zona de liberdade onde seu gênio pode se desenvolver até o infinito.
A afinidade entre poesia e canto é uma afinidade congênita. Em um dado momento poderá relaxar ou em outro fazer-se mais íntima, porém haverá de durar para sempre, porque não radica na linguagem – no austero arsenal da retórica, que caduca e se renova sem cessar –, mas sim na própria voz humana, que o homem empresta à poesia para que, ao ser falada, se realize na totalidade de sua perfeição.
A diferença entre prosa e poesia consiste em que, enquanto uma não pode ao leitor senão que lhe empreste seus olhos, a outra necessita, com todas as forças, que lhe entregue a voz. Cada poeta tem um estilo pessoal (por vezes indicador de sua postura estética) para “dizer” suas poesias. Este as canta, aquele as reza, outro as sussurra, outro mais as soluça. Ninguém se confina unicamente a ler. Encomendai a quem queiras que diga um poema. No ato impostará a voz na tessitura do canto e, na continuação, o verso sairá vibrando de sua garganta, com um tremor de vida que somente a voz lhe pode infundir; porque ocorre – meus amigos queridos – que assim como Vênus nasce da espuma, a poesia nasce da voz.
JOSÉ GOROSTIZA
***
José Gorostiza é, entre todos os poetas de seu tempo, o de mais fina e contida emoção. Suas poesias acusam, em vez de espontaneidade, pureza e perfeição definitivas, laboriosa decantação. Gorostiza sabe – como Juan Ramón Jiménez – tocar seu poema até a rosa, e deixá-lo de tocar, precisamente, quando já é a rosa. Daí a escassez de sua obra. O sentimento rítmico, de musicalidade, se sobrepõe nele às quebraduras inarmônicas. Melhor que a aparente liberdade métrica prefere voltar os olhos e acomodar-se, amiúde, junto a um dos Góngoras, o das cançonetas. Sempre a submeter sua expressão a uma música menos dos ouvidos que do espírito. Há em seus poemas um tom elegíaco cativante, e uma nostalgia marinha de tímidos tons, porém arrebatadores.
XAVIER VILLAURRUTIA / Texto datilografado e enviado pelo Instituto Nacional de Belas Artes (México), apenas com a referência à sua data: 1924.
QUEM ME COMPRA UMA LARANJA?
Quem me compra uma laranja
para minha consolação?
Uma laranja madura
em forma de coração.
O sal do mar nos lábios
ai de mim!
o sal do mar nas veias
e nos lábios recolhi.
Ninguém me dera os seus
para beija.
A branda espiga de um beijo
eu não a pude segar.
Ninguém pedira meu sangue
para beber.
Eu mesmo não sei se corre
ou se deixa de correr.
Como se perdem as barcas
ai de mim!
como se perdem as nuvens
e as barcas, me perdi.
E posto que ninguém me pede,
já não tenho coração.
Quem me compra uma laranja
para minha consolação?
À MARGEM DO MAR
Não é água nem areia
a margem do mar.
A água sonora
de espuma simples,
a água não pode
formar a margem.
E porque descansa
em delicado lugar,
não é água nem areia
a margem do mar.
As coisas discretas,
amáveis, simples;
as coisas se juntam
como as margens.
De tal modo os lábios,
se querem beijar.
Não é água nem areia
a margem do mar.
Eu só me vejo
por coisa de morto;
sozinho, desolado,
como em um deserto.
A mim venha o choro,
pois devo penar.
Não é água nem areia
a margem do mar.
ESPELHO NÔ
Espelho nô: maré luminosa,
branca maré.
Conforme em tudo ao movimento
com que respira a água
como se inflama em sua delgada presa,
alta maré
e ilumina – que pureza do contornos,
que pele de flor – a distância,
desnuda já de peso,
já de eminente claridade gelada!
Conforme em tudo à moleza
com que repousa a água,
como se torna fundura, fundura,
baixa maré,
e mais cristal que luz, mais olho,
tenta um olhar
em que – espectros de cor – as formas,
as claras, belas, mal feridas, sangram!
PRESENÇA E FUGA, III
Tua distração se gesta na cobiça
desta sede, toda tato, assoladora,
que desfeita, não viva, te atesoura
no nímio caudal da notícia.
Já te vejo morrer na carícia
de teus ecos; nessa ardente flora
que, nascida em tua ausência, a devora
para mentir a luz de tua delícia.
Pois não és tu, fluente, a ti atado.
És beleza, nada mais, desgovernada
que em ti, porque a assumes, se consome.
És tua morte, nada mais, que se adianta,
que ao habitar teu rastro te suplanta
com audazes resumos de espuma.