5 Poemas de Ernesto Mejía-Sánchez (Nicarágua, 1923-1985)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A impressão inicial que temos ao ler os primeiros poemas de Ernesto Mejía Sánchez (Ensalmos y conjuros) é de surpresa. Desde o início, digamos, desde o seu vigésimo quarto aniversário, ele já era um poeta notável. Com olhar crítico e sentimento alado, esculpiu versos e ergueu poemas como belas colunas, e mais do que isso – ou com isso – já tinha um mundo poético diferente. Isso mudará com o passar dos anos, e seu verso se tornará mais familiar, mais acessível, mas o primeiro Mejía Sánchez, apesar da filtragem das leituras, tem certeza do que diz e como diz. Ele é o poeta que visitou a tradição, que a aproveitou e a transferiu, e que, no entanto, não pode ser acusado de ser outro. Podemos observar a presença de anjos e associar-nos a Rilke, claro, mas sabemos que aqueles anjos só trabalhariam ali, naqueles versos deste poeta nicaraguense e mexicano. Podemos nos deter em versos que nos levariam a espaços de ecos criados por Xavier Villaurrutia, mas é um estado momentâneo, porque o fragmento (toda a coleção de poemas) é de uma sensibilidade distinguível, única.

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Mejía Sánchez – como Darío, como Martínez Rivas – não escapou de ser profundamente marcado pela Europa, e por volta de 1957 publicou Contemplaciones europeas, e depois Disposición de viaje (1956-1972), onde os registros permanecem. Mas Mejía Sánchez, ao contrário de tantos latino-americanos, não se sentia um estrangeiro na Europa, talvez porque os nicaraguenses tenham sede geográfica e vocação desde suas raízes. Mejía Sánchez observou, reproduziu mental e emocionalmente momentos únicos e irrepetíveis, e os levou para a página: momentos na Itália, na França e sobretudo na Espanha: momentos de solidão contemplativa ou reflexiva ou compartilhados com mulheres, e que serão salvos, gastos, gastos de novo e transformados em algo vivo e diferente na memória. As imagens nunca são completas e as sensações recuperam parcialmente a emoção aérea ou terrena da beleza. Mesmo que você releia o poema que escreveu, reviverá uma emoção que pareceria e nunca mais será a mesma. Ou com uma citação ou paráfrase inevitavelmente heraclitiana: duas vezes você não se lembra ou não tem a emoção experimentada.

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Em uma epígrafe de Alfonso Reyes que Mejía Sánchez usou em um de seus poemas, li: “Aprendi um bom hábito com Solalinde, fruto de sua saúde moral: assim que arrumamos os papéis e saímos para a rua, o filólogo desapareceu, dando lugar ao menino mais simples que já conheci.” Permiti-me fazer duas mudanças e uma pequena correção: em vez de Solalinde, Mejía Sánchez; em vez de menino, homem. Um dos homens mais simples que já conheci.

MARCO ANTONIO CAMPOS / “La poesía de Ernesto Mejía Sánchez”, 2016


O TIGRE NO JARDIM

Sonho com minha casa em Masaya, com a casa de campo que meu pai desperdiçou, onde passei minha infância. Estamos à mesa, na pequena sala de jantar rodeada de vitrais. Comemos rosbife sangrando, ainda preso no espeto. Sua fragrância espalha uma certa familiaridade animal. Há visitantes com certeza, amigos e parentes, mas não vejo seus rostos. Em um canto da mesa, eu como devagar. De repente, viro a cabeça para o jardim e vejo o tigre, a cinco ou seis passos de nós, atrás da janela. Pego a espingarda no canto, quebro um vidro e atiro nele imediatamente. Perco o tiro mortal e a fera covarde e gravemente ferida foge de tombo em tombo sob os laranjais. Meu pai tira uma garrafa com rótulo bem pintado, com as medalhas de ouro das exposições, e leio várias letras que dizem Turim. Alguns copos bem floridos vêm à luz, azul, magenta, âmbar, violeta. Todos bebem e elogiam minha velocidade e agilidade, mas não a imprudência de atirar sem perceber se a arma estava carregada. Alguns dizem que quando a bala estava no ar, a besta impertinente mexeu o pescoço e eu não o acertei mais no coração, mas sim no ombro. Eu como devagar. Deve ser dia de São João, dia da minha mãe, solstício de verão. A mente ardente continua pensando no tigre. Em um descuido eu o persigo até vê-lo cair como uma tapeçaria humilhada ao pé da minha cama. Todos continuam bebendo. Agora felicitam Myriam, porém a mulher declara sem censura que são coisas minhas, coisas da minha imaginação.


CASCO DO ARCANJO

Para Federico Cantu

A noite toda eu ouvia sua tempestade
na minha cabeça, golpes secos como cascos
de águia ou tigre ou garras de cavalo,
batendo na calçada dura, eu acho
até sangrar a carne macia ou o coto.
Cavalo treinado apenas para tortura,
águia que só sabe mexer no duro,
pássaro mais que humano ou quadrúmano alado,
o que tenho, o que me cobiças, que insolência.
Toda a noite estive trabalhando em seu teimoso
desvio, lá fora eu ouvi as faíscas de aço
das unhas contra o cimento, aqueles pedregosos
prolongamentos da fúria contra a vedação,
ou gemidos suaves como ternura à espreita,
imitando a respiração doce e agitada de minha mãe
ou o sono inquieto de Myriam que me protege,
e eu disse: Pomba ou tigre, não me tentes, sou daqui,
nem ouro ou poder me afastarão desta cama,
não me compres, não digas o que não devo dizer,
sejas responsável pela minha felicidade, não compres.
Eu não cedi. Ele não cedeu. Subi ao telhado pela manhã.
Lá estavam as garras furiosas, a penugem
vermelha, a pedra rasgada como minhas costas.


CONVERSAS NO BAR

Dizem que o matei, ouvi-o em Havana; mas ninguém queria me contar sozinho. Esperaram o teatro cheio e gritaram apedrejando, com ovos podres e tomates. Eles não dizem que eu o matei, tecnicamente; mas que o vendi, que o entreguei em minha casa, entre lençóis brancos. Sim, Granada estava louca em busca de cores. Azul e vermelho, vermelho e dourado nas bandeiras, pelas murtas, pelos vasos de arrebol, na Carmen de Falla, farejando fogo ritual e sangue nas roseiras. Ruiz Alonso, mascando um cravo negro entre as mandíbulas, mandou que me perseguissem de casa em casa, porque a nossa era toda Granada e lá me encontraram, já pálido, os algozes de tricórnio. Minhas irmãs usam camisas e holandesas com lavanda e flores de laranjeira. Ali os algozes estão sorteando suas roupas. Ali se ouviu que eu era ele e que naquela mesma noite eles me matariam. E Ruiz Alonso, esmagando o cravo, mandou disparar fogo no L azul de Luis no pijama.


PÁGINA BRANCA

A Octavio Paz

Lucidez e/ou embriaguez do poema. Insolência de ser que transborda do próprio olhar, plenitude ou mais, esbanjamento, pelo vago estremecimento do favorito, porque os dons sequer estão contados e os esbanjas com viciosa generosidade. Aleluia. Louvado quem vem em nome do desperdício, que só quer entregar excesso de energia. Eu te celebro, saúde, fruto da terra, parto sem dor, leite morno fluindo, vinho transbordante, imaginação de sangue, porque significas o Sim que supera a mera existência; porque ninguém merece o que não pode dar.


SOU SOLAR

Ao grito azul do céu recém-nascido, entre a folhagem verde ainda escura da vida noturna e animal, responde o brilho desolado daquele que foi rei lunático, com passos aleatórios, apressados, lentos. O largo disco corre em sua alegria milenar, depois de percorrer picos nevados, areias derretidas, crepúsculos de chamas furiosas, púrpura insolente do ocaso. Seguir, segui-lo, à vista de todos, e deixar dormir um poderoso raio na mão magnânima, até aquecer o fraco coração gelado de uma lua fugitiva e dolorosa. Onde estarás doze horas depois, vestindo de luz quais terras, mares, selvas ou rios, com a reverberação de teu poder genital. Sou solar, deus noturno, quando a pálpebra exausta e ávida do dia entra com passos firmes nas águas lentas e densas do sono, não durmo, não sonho mais do que durmo, para descansar o presente luminoso e ardente que me faz menos eu, quando já deslumbrado me assombro. Sou solar, de muito sol a céu aberto vem a carne espalhada no osso virgem. Sou solar, de muito mundo ao sol, verões, praias, ilhas, vem o corpo que te dou esta noite. Sou solar, por mais que procure mais ternura em braços marrons do que o fogo precioso, sou solar. Os ares noturnos querem embalsamar a fúria do adormecido; não há descanso, sou solar. Não há remédio, ao meio-dia, à meia-noite sou solar.

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