5 Poemas de José María Lima (Porto Rico, 1934-2009)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Nós nos situamos diante do poeta José María Lima, que se caracterizava por dizer as coisas desde a própria margem da memória, em sua ânsia de transcender o tempo que o impelia. Seu olhar nos leva além do horizonte, suas palavras se destacam da superfície fixa do papel para se tornar o som e aquele eco que reverbera. O poeta é poeta porque observa o que não se vê a olho nu, porque escuta o silêncio e porque sabe que o espaço em branco de uma folha de papel lhe oferece aquele lugar seguro da palavra que não vai embora, mas permanecerá ali encarnada como uma pegada que se rasgará até ficar uma cicatriz tatuada.

Lima teve que partir para outro plano de existência em 22 de abril de 2009, pouco antes de sua coletânea Poemas de la muerte ser publicada, porém o poeta vive em sua poesia. Nasceu em Ceiba, em 16 de agosto de 1936. Era interdisciplinar: estudou matemática, fez cursos de teatro, estudou pintura com Eugenio Granell (discípulo de André Breton), fez um ano de Arquitetura em Harvard e concluiu o mestrado na Universidade de Berkley. Fez parte do grupo de artistas surrealistas Mirador Azul, que o ajudou a desenvolver o gosto pelas imagens visionárias, o mundo dos sonhos, o humor e a paródia. Em 1966 escreveu Homenaje al ombligo, junto com sua esposa, a poeta Angelamaría Dávila. Em 1982 publicou uma compilação de sua obra poética de 1952 a 1982: La sílaba en la piel; em 2001 foi a vez de uma série de poemas já publicados e vários inéditos serem reunidos sob o título de Rendijas. Poemas de la muerte foi publicado postumamente.

[…]

Presenciou a importante década histórica dos anos 1960, marcada pelas lutas pelos direitos humanos e contra a chamada guerra fria. O poeta experimentou em primeira mão a indignação que a solidariedade com essas causas representava. Quando fez uma viagem a Cuba nesse período, desafiando a proibição de visitas de cidadãos estadunidenses àquele país, Lima teve que lidar com a opinião pública porto-riquenha. Entre 26 de agosto de 1963 e 15 de maio de 1964, os vários protestos a favor da expulsão de Lima como professor de ciências da Universidade de Porto Rico foram publicados como notícia de primeira página e como tema editorial do jornal El Mundo sob a manchete “Caso Lima”, enquanto outros setores se declararam em sua defesa. A essas primeiras páginas dos jornais somava-se a visão que se tinha naquele momento histórico sobre o comunismo e o medo de que seus ideais se espalhassem pelo ensino dentro das universidades. Setores sociais, políticos e culturais se manifestaram a favor da expulsão de Lima; enquanto grupos estudantis defendiam o poeta aludindo à liberdade acadêmica e à impossibilidade de um professor de matemática falar sobre o comunismo em sua sala de aula. Houve protestos, confrontos com a polícia, criou-se um clima de desestabilização que fez com que continuasse a ser um tema de opinião pública. Esses eventos e circunstâncias individuais que o poeta enfrentou ocorreram durante um período histórico em que qualquer movimento político que promovesse a independência era visto como uma ameaça à suposta estabilidade oferecida pela democracia.

ELIZABETH D. SÁNCHEZ VIERA / Revista Diálogo, 2015.


[QUANDO AS TARDES MORREM EM UMA SÓ MANHÃ]

quando as tardes morrem em uma só manhã. todas as tardes do passado, as tardes do presente e as tardes por vir; quando as tardes, digo, se entretecem e enredadas caem de imediato em uma aurora sem promessa e morrem, há reunião de aves cegas sem itinerário e caravanas de formigas sem destino, até mesmo pode acontecer que a onda destrutora de muros sequer escreva sua espuma final nos escombros ou que ao mirar de frente os olhos do palhaço advirta que não encerram a tristeza adivinhada. e se acaso escutamos longe um último lamento ou se do próprio centro do sangue escapa um alarido ou se com forma com pequenos enojos um soluço não encontrará um final que o detenha. porque não há parede de conclusões que posa deter o pranto provocado por uma morte de tardes ao amanhecer. não há recinto de sílabas que possa acomodar uma multidão de tardes mortes antes de um meio-dia. todos os cansaços juntos, desaforadamente abrindo e rompendo não cavariam nunca a tumba capaz de conter tanto sol terminado. quando todas as tardes morrem em uma só manhã as noites prometidas são pressentidas em dobro, os dias e os rios vindouros já esvaziaram sua carga de morte adiantada. então pouco importa que tenham cadeiras esperando além de hoje ou um sapato que a ninguém pertence ou uma garrafa com mensagem ou vazia. pouco importa que as mãos encontrem ou não a estrela.


[UMA ORELHA DESPRENDIDA CAI]

Uma orelha desprendida cai;
é o peso insuportável do silêncio.
As línguas foram amarradas,
a lira cansou,
subitamente ficou sem som.

Regressa o dia
navegando interminavelmente
sobre um deserto de ondas mal penteadas.

Regressa o meio-dia
com sua presença absoluta de criança precoce e imprudente.
Cai as doze como um brinquedo novo,
a uma é ainda feto no relógio.

Há um coração pesado sobre um céu,
uma armazém de espuma;
uma caricatura de glória
apertada em um avental vazio.
Há um coração pulsando desesperadamente
porém não nesta alcova.

Aqui, tudo está igual,
há apenas um pêndulo.
Lá fora, vozes que amanhã
haverão de cair dolorosas sobre o rosto.


[AGORA RETORNA]

agora retorna
após séculos
escrito com a raiz do fogo,
este fantasma sem som
e apenas luminoso.
um pedaço de tempo
se deteve em seu seio.
talvez nem tudo esteja perdido;
talvez reste uma nota
sustentada apenas
no rosto de cristal do tempo.
pode ser que surja
uma renovação de pombas
na colina nova.
pode ser que um novo agosto
se esconda atrás da nova esquina
que acaba de surgir na distância
pode ser que comecem
a sorrir novamente os relógios
e a atormentar-me
enchendo de sons extensos e simétricos
esta penumbra que começava a ser noite.
podem ser tantas coisas;
pode ser que se afaste esta turva realidade
de horizontes datados,
este destino de freios e fronteiras,
esta ilusão de nomes mal formados.
por sobre o peixe e a rocha
há tantas coisas
que não podem ser ditas.
há tantas penas de pedra em pedra
há tantas esperanças surpreendidas sem roupa nos espelhos.
tantas palavras pegadas à boca
por anos, sem sair.
nos dentes há sonhos
e nos lábios quer nascer um seio.
há consequências truncadas detrás de cada esquina.
a queixa prometida
há um milhão de anos
dorme dentro de um dicionário frio.


[O DIA SE RECOLHEU EM TUA CINTURA]

o dia se recolheu em tua cintura
abraçado às bordas de teu umbigo,
por tuas coxas avançam os ruídos da noite
e teus seios, montanhas à caça de lustres
(apressados lustres teus mamilos)
a fonte desejada dizendo seu rumor
sempre igual e distinto,
duplo calor aprisionado
puta calor de estrela comprimida
estouro dormente protestando seu confinamento
pedindo um universo
para inverter sua fúria de vulcão encerrado
fruto, pássaro, trinado maduram sua canção
em teu ventre.
como a terra magnificas
como o espaço abraças e recolhes
por ti transita o dia
e em ti a noite descarrega seus rumores.


[ESTE BALCÃO QUE JÁ NÃO É]

Este balcão que já não é ainda encerra febres femininas, angústias, começos e fins de torrentes rubras, sacudidas, incêndios repetidos com precisão de relógio. Sobre formigas pelos tornozelos, assim como insultos em noites azedas em que um simulacro de transgressão, um simulacro apenas, provoca dores de outro tipo nesse pesado âmbito que a cerca com todo seu metal torcido. Asfixiante esse muro com cílios que trocou seu ódio por pão azedo e chegou inclusive a imaginar que havia mudado de pele ao encontra-la. Ela pensa agora em outros ossos mais brandos, sabe ou intui outros atalhos, de qualquer forma sempre estamos apressados, e tenho meu direito, diz. Já não é tão rítmico seu coração, é jaula de animais decompostos e fede. Pensa que reuniu mal seus sonhos em uma única cesta e apenas porque outros hoje tão malcheirosos e azedos como ele lhe fizeram acreditar que os havia mal distribuído, que os malgastava ou os tinha regados e não esteve segura. Conseguiu atar-se a uma corda que ao final de contas necessitava uma mão que a salvasse, pois de outro modo teria terminado em franjas. Esse balcão odioso, os utensílios bem ou mal postos, porém mal na sobremesa; as pantufas, as calcinhas sujas e nem sequer um fio que possa reunir as sombras e que soem. Tudo ela vê dormindo inteiro sob suas pálpebras, imagina dois metros de terra fresca acima com margaridas e açucenas crescendo depois de cheirar as consabidas noites e quem sabe quatro ou cinco alegrias que acredita ter visto em dias claros e que lhe pertencem. Nisto soam as sereias ou seu equivalente, os timbres, as vozes indicando a hora exata que seria em outras circunstâncias antessala do desejo. Começa a dilatar-se o tempo precisamente agora já não é o mesmo, tem um sorriso cruel, tão pouco interessante já sua sombra extensa de animal cansado que correu muitas léguas apenas para que tartarugas de mais sorte e menos intolerantes lhe atassem tonto de exatamente duas bolas e uma néscia parede ao redor das circunvoluções, se acaso existem.

Quatro noites despida e sem acento, três noites em penumbrosa expectativa, porém não é certo pensa mais com raiva do que com dor, porque já lençol e pele são quase homônimos e alguém já esqueceu que existem outras anatomias.

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