5 Poemas de Juan Antonio Vasco (Argentina, 1924-1984)

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Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Floriano Martins

Juan Antonio Vasco nasceu em Buenos Aires em 1924. Durante sua infância e adolescência viveu em Chascomús. Em 1941 formou-se professor rural e exerceu a profissão na cidade de Dolores. Anos mais tarde mudou-se para Buenos Aires e estudou Humanidades. Em 1950 iniciaram suas primeiras experiências com a escritura automática. Esteve ligado aos poetas do movimento surrealista argentino e colaborou nas revistas A partir de cero e Letra y línea. Em 1954 estabeleceu-se na Venezuela e trabalhou como publicitário. Ele interveio ativamente nos movimentos culturais de Caracas, participou de Sardio e El techo de la Ballena. Em 1968 voltou à Argentina e apareceram os primeiros sintomas de esclerose múltipla que o prostrariam progressivamente. Faleceu em Buenos Aires no final de 1984. Em 1985 a revista La Danza del Ratón publicou pela primeira vez a versão completa de seu longo poema Parranda y funeral. Editou os seguintes livros de poesia: El ojo de la cerradura (1943), Cuatro poemas con rosas (1948), Cambio de horario (1954), Destino común (1959), Pasen a ver (1982). Postumamente, foram publicados: Déjame pasar (1988) e Parranda y funeral (1992).


A RECONSTRUÇÃO DO FATO

Um juiz de instrução pôs as meias de lã
o cachecol de lã
meteu sua gravata de lã no café com leite está obcecado
É seu primeiro assassino e o bilhete do subterrâneo muda de bolso como uma lesma
deixando uma marca de jurisprudência sobre sua jaqueta de lã
O guarda do subterrâneo empunha suas tesouras e recorta a peruca do juiz de instrução fazendo uma assombrosa trova de tesouradas
Porém é seu primeiro assassino
Muda de assento saúda com reverência as mulheres que viajam com a sombrinha aberta
A umidade é espantosa chove dentro do metrô
O assassino sorri com essa inconfundível cortesia das pessoas bem-nascidas que se perderam na vida pelas más companhias
empresta seu lenço ao juiz de instrução recita o primeiro capítulo de D. Quixote conforme estabelece o código de procedimentos
É um assassino de cabelos grisalhos suas mãos têm a suavidade da lã de Angorá
fez migalhas com o clandestino brincando de descobrir em que mão está
ganha o assassino sempre ganha o assassino
distribui charutos e sorri ao público
O juiz de instrução limpa seus óculos sem cessar muda de posição no assento o subterrâneo se detém na janelinha do hipódromo
em um velório
em uma festa de primeira comunhão onde a menina comunga com rodelas de queijo
e a mãe passa rodando a torta com um gancho de arame
É seu primeiro assassino
Falta apenas uma estação a terminal sob o grande lago gelado as escadas em caracol talhadas no gelo mostram ao redor do mais perfeito aquário
Porém é seu primeiro assassino corre até a cabine do condutor tenta persuadi-lo de que é preciso retornar porque o lago se derreteu e avançam a caminho de uma morte segura
Eu tenho minha planilha diz o condutor enquanto eu tiver minha planilha o resto não é assunto meu
Porém é meu primeiro assassino
A mim o que me importa é a minha milésima planilha
O juiz de instrução tenta estrangular o condutor
quer dar marcha a ré porém o mecanismo lança ar por todas as comportas e os homens saem das escotilhas com o rosto coberto de musgo
e o subterrâneo segue em frente porque o condutor tem sua planilha e põe o juiz de instrução em seu lugar
O assassino sorri uma vez mais adivinhou onde o clandestino oculta a pedrinha
Na folha de serviços diz e ganha outra vez
Chegaram é preciso começar a reconstrução do fato
O juiz treme como os recitantes quando abrem os braços e tiram seus relógios de bolso para levar o ritmo dos anapestos e da peste
O assassino lhe diz já passará eu também estava nervoso em meu primeiro caso
tudo é uma questão de começar e se você deseja eu posso mostrar como se faz
Você é muito amável porém eu não estou nervoso
comecemos de uma vez mostre-nos como assassinou a jovem
como deteve seu leito de rodas quando saía da estação de ônibus absolutamente sozinha adormecida e nua
Eu diz o assassino sempre procedo de uma maneira científica
é muito fácil assassinar as jovens e não é preciso possuir uma grande imaginação é suficiente ter bom dente
Cortei sua cabeça com esta faca
assim
O juiz de instrução está muito impressionado
sua cabeça ficou separada do tronco
O assassino e o clandestino brincam com os despojos para ver em que mão está


A TUMBA DOS AMANTES

A melodia de um fagote que retorna carregado de lauréis
o ar apenas tíbio que exala a tumbas dos amantes
tudo está em seu ponto
A auréola de óleo que marca o lugar onde estavam seus seios
essa cera de insônia que manipulavam as mãos de amante
mercador de espécies virgens novamente virgens
A calma cai desdobrando sua serpente de caramelo sobre o rosto do anoitecer
Juntos outra vez lambidos pelo ferro da barca que desaparece no esquecimento das palavras do desejo
oram pondo as quatro mãos no vão deixado pela morte ao erguer o voo sobre os tetos de piçarra
Já sabem tudo o que há por saber quando Deus desce de sua cadeira com o grande apito de osso
porque a retreta é celebrada no quarto onde ardiam lançados na pira do pudor
Não obstante cada primavera que retorna carregada de correntes
cava ali no lugar onde tinham o amor
e torna a despertá-los
com a garganta cheia de remorsos


O NAUFRÁGIO OU O RISCO DE VIVER

Esta noite tem uma perna de marfim que ressoa pelas escadas
indo e vindo entre teu coração e a página de um livro onde está a mesma história de sempre
Porém quando os ponteiros do sonho se juntam em teu rosto desolado pelo amor
e começam a fincar suas agulhas na carne como o navio que um tufão arremessa sobre a ilha e deixa escapar pelos olhos de boi os segredos da viagem
compreendo que tuas entranhas foram feitas com as amêndoas do desvelo
essa construção de fósforos eternos e mentiras entrelaçadas que envelhecem na antessala dos instintos
cujas esquinas ostentam fontes de ferro lajeado com um mecanismo que muda de cor a cada hora
ou quando o matrimônio costura uma extensa fila de botões na jaqueta do amor

esta noite suaviza as cicatrizes do hábito que doem quando a chuva acomoda suas caixas de cigarros nos aparadores da nostalgia
e se estende para iluminar os recantos do conhecimento
pondo ao alcance do desejo os espelhos molhados em lágrimas por onde é visto o rosto em chamas da poesia
uma blasfêmia arrastada pelo vento
o rosto caído no mundo que somente a má-fé pode confundir com a beleza da água pura
a investigação do amor a cisterna onde flutuam os rostos da aventura inquietada por silenciosos terrores
o suor que o verão põe à frente dos eleitos sem lhes dar o consolo da irresponsabilidade
A carne apodrecida do compromisso com sua lanterna de mineiro à frente
lança entretanto suas bolas de marfim que rolam entre as pernas dos fugitivos
porém tu existes de todos os modos protegida por teu antigo artesanato de construtora de espelhos
existes para que o viajante possa narrar junto à estufa os costumes de seu país
entre bocado e bocado de um estranho pão cujas propriedades permanecem ocultas
na mesa em que os camaradas da morte dão corda nos relógios e desconcertam todo entendimento prévio lançando ao mar o triste aparelho da consolação
É então quando a cabeça cheia de vapor apodrece insensivelmente sobre o timão
E o navio vacila sem acabar de escorar porém irremediavelmente ferido
desnudo e pronto para a decomposição
É então quando tudo surge de imediato na borra do vinho essa concentração de desejos irrealizáveis
ao lado de qualquer mulher cujo riso rasga os vestidos do varão
na noite dos achados
enquanto os verdadeiros amantes conversam em suas cabanas protegidos do tédio por uma parede construída metade de despojos de navios metade de sentimentos piedosos
também conhecidos pelo frequentador das tabernas ocultas onde o perigo deixa cair seu vidro moído na copa de todos os que aceitam o risco de viver


A HARPA DE MADEIRA

I.

Um país de esplendorosa pele de garrafa
passa desnudo como uma mulher
junto aos edifícios do mar
Seus alegres peitos de areia conservam inextinguível a marca de uns dentes
os dentes com adorno de ébano
os dentes de sorrir ao sol
Belo país de pele inchada pela velocidade de seus filhos
camisa de cobra que agita a umidade
tambor precipitado da colina ao mar com seu seixo dentro
a pedra da boa sorte e a música de pele

II.

Sabem eles que esmagaram o relógio de pulso com uma montanha?
Apontam o norte com nuvens
fogo
seca fumaça de conversação
e deixam passar o estrangeiro
até as colinas contornadas pelo sol de seus pés de aplainada luz até o cume
Ali verás
subindo de janela em janela
bochechas ou ventres frenéticos de calor
São os morros de coro por cujos olhos de boi surgem crianças amarelas de inocência
com a cachola raspada pelos duros bastões de mandioca
Ali verás os santos de pele de palma da mão pendidos nos corredores
incensados como fumaça de rum
Cabeças reduzidas pelo patriotismo que bebem xarope de vaga-lume
bons amigos de um anoitecer
bons cidadãos de seu alto forno de palha perfurado pelo bastão do feiticeiro

III.

Há também grandes formigueiros onde as mulheres são escondidas
É possível escutar a harpa de madeira que retumba sobre as árvores como a chuva nos aviões
Ali se sua entre as canelas
E aprende-se a não esperar senão a magra cota do calor do ano
Despojos
bacias redondas de gozar efêmeras
instrumentos de serenata
e uma pinta de água para a honra
Oh mensageiro acostumado à espessura da memória
não se semeia na pele
E no entanto às vezes o frondoso pelo dessas múmias recorda os compassos da Valsa sobre as Ondas
ou o bambu de água de coco que se acumula entre dois peitos de mulher apertados pelo desejo
jorrando amor sobre o que se vê
o único que existe
Aqui o que se vê
o único que existe


O RESCALDO DO CÉU

Vinde a mim fêmeas do calor

Aqui onde os trópicos deixam entrever sua fotografia de resplendor velada na lembrança
desembarcou a casta foca do verão
ai a curta navalha do verão
sem ancoradouros como a mão do solo que abre lentamente seu talho de prazer

fecho os olhos diante deste outro sol
fecho a navalha de golpe como a válvula de sorver alimentos nas praias radiantes
para que me incumba o sol de Cumaná
ali onde a adolescente nua em seus farrapos descabeça na praia os peixes da família para escaldar
o cheiro de sua puberdade a redondeza de suas pequenas tetas
Ai camarins do trópico ostras de sexo bem-aventurado
Abre-me as ostras e o jorro de limão nos olhos para nascer no peito para viver na boca para murmurar sob o sol

Esqueço a erva pacificadora a sensatez dos pinheirais
esqueço para ver
as altas copas de cristal talhadas na rocha pela molície
a palmeira inoxidável sob o sol
o cormorão do mar
o sol cheio de escamas e de ilhas com suas pupilas de concha de tartaruga incandescente abandonadas pela ressaca entre teu corpo que afunda na praia devorado pelo rumor dos coqueiros e teu pelo que se derrete com tua carne sob a abocanhada do sol

sob a máquina branca do sol

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