5 Poemas de Raúl Gustavo Aguirre (Argentina, 1927-1983)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A tarefa essencial de um poeta não é outra que aquela pela qual sobrevém um homem: a compreensão cada vez mais íntima da realidade em que se move, começando pelo universo e terminando por sua casa, por sua própria cabeça.

É certo que não lhe pertence – diretamente – a realidade que maneja um físico ou um matemático, como também não pertence aos demais homens. Porém isto não quer dizer que os meios de conhecimento de que dispõe sejam menos válidos.

O poeta não pode renunciar àquilo que o emprego da razão não lhe proporciona, àquela parte do mundo que funciona fora dos alcances de seus sistemas. Melhor, agora começamos a ver que o domínio da poesia é um domínio que parece funcionar muito além das formas inteligíveis, explicáveis, da realidade. Porém o poeta não é um ser irracional, se com isto se quer dar a entender que renunciou à faculdade de intelectualizar a realidade, porém sim, é irracional, se o que se quer dizer é que não se deixou conformar com esta intelectualização.

O poeta se encontra situado entre dois modos de conhecimento que são parciais e complementares. No processo imemorialmente seguido pelo conhecimento racional ao conhecimento intuitivo – diz André Breton em Os vasos comunicantes – corresponderá ao poeta produzir a prova capital que ponha fim ao debate.

Tal é seu problema elementar, o que o leva a situar-se no mundo, a tratar de compreendê-lo.

[…]

A prodigiosa síntese que se dá em um poema não é outra coisa que universo colhido: tudo, tudo, desde o princípio, vem desembocar, concretar-se nela. Não tendes o direito de dizer, porque não o reconheceste, que ali falta algo do que, até esse instante, havia no universo.

É a palavra que dá ao poeta sua razão de ser. E de onde toma o poeta suas palavras, a matéria com que trabalha? Sempre de uma realidade exterior, mesmo que em seguida a transforme em seu corpo.

Por que preocupar-se então se o poeta está ou não vinculado com a realidade? Sempre o está de alguma maneira, e tanto mais próximo dela quando transcende as superfícies exteriores e as formas para estar de uma maneira mais íntegra, ainda que menos aparente, quando exercita todos os meios de que dispõe o ser humano para adquirir uma imagem autêntica do mundo.

É a atitude do poeta o que conta, mais do que o significado de seu discurso. E, em consequência, qual segue sendo então o único problema? O da identidade com a vida. Que o poeta não a subtraia, que a ela não se interponha, que a facilite. Que não a obstaculize com uma forma do passado, com uma superfície falsa tomada em vez de um fundo verdadeiro, que não renuncie a submergir na verdade do mundo, mesmo quando ela o torne – é seu destino – cada vez mais solitário, mais incomunicável.

Raúl Gustavo Aguirre / “Presencia de la realidad en la poesía”. Revista Poesía Buenos Aires # 9. Buenos Aires, 1952.

***

Quando contava com 24 anos, ansioso de percorrer seu próprio caminho sem mais tutela que a cumplicidade de seus amigos, uniu a palavra poesia ao nome de sua cidade natal e assim deu início a Poesía Buenos Aires, um movimento que conseguiu aglutinar toda uma geração em torno à revista e às demais publicações propiciadas pelo grupo. Como já é reconhecido, boa parte dos gostos poéticos introduzidos durante a década de cinqüenta na Argentina foi definida, tanto por adesão quanto por diferença, a partir das ações e edições desse movimento no qual lhe acompanharam, entre outros, Edgard Bayley, Rodolfo Alonso, Jorge Enrique Móbile, Mario Trejo, Wolf Roitman e Nicolás Espiru.

[…]

A inauguração oficial da poesia contemporânea na Argentina, na opinião de Pedro Henríquez Ureña, concretizou-se com a publicação de Prosas profanas, de Rubén Darío. A obra de Raúl Gustavo Aguirre veio a cumprir-se meio século mais tarde e, a seu modo, prolonga e contribui com a revitalização de muitos dos elementos que essa contemporaneidade lançou à luz. Foi o eixo de um movimento que renovou em seu país os usos poéticos de seu momento, ao mesmo tempo em que introduz outros modos e referências para valorizar o achado lírico. Soube dar em sua palavra um testemunho de vida, de atenção à vida, procurando confrontá-la a cada instante com o mistério da condição humana. Hoje é com justiça que é reivindicado como um irmão maior e um mestre pelos jovens poetas argentinos.

Lhe correspondeu uma época de eclipse da poesia, uma época em que entre ela e seus destinatários se interpõem, obscurecendo-a, os flamejantes produtos da técnica. Das sombras desse eclipse avistou seu “sistema solar jovem e estranho”, ou seja, a luz de sua “estrela fugaz”.

Eugenio Montejo / “Raúl Gustavo Aguirre”. Revista Imagen. Caracas. 1991.


ALGUMA MEMÓRIA

Bela que me anuncias uma extraordinária complicação. Tantos crimes esquecidos reaparecem por ti.

Chega o tempo da proeza infatigável diante de teus olhos sem sonho que nenhum diamante pode fechar.

I

Ela se expõe às angústias do século, usinas da realidade. Mais explícita a queremos, menos a conhecemos. O sonho dos assassinos e dos poetas é que chegue a ter um rosto.

Nela a escuridão se transforma em largo regozijo do ladrão solitário. Os sinais que não compreende não estavam dirigidos a nós.

Ela sega o verão e logo tudo é azul ao redor de seus olhos invisíveis.

Como a cigarra, só pode viver em meio ao incêndio que suscita.

O mundo-monstro de súbito se transforma no mundo-donzela, a escritura desesperada em escritura maravilhada. Estas mudanças a enfeitiçam.

Através dela tornam-se visíveis as feridas do vento. O vento livre que sangra e que a adora.

Na cova do alquimista ela se cala, como investida de uma miséria admirável que fosse ao mesmo tempo seu rosto e seu segredo.

Mantém esquisitas relações com a luxúria exumada diante de si. A chuva de cinzas lhe produz prazer.

Através dela, duram os relâmpagos. Há tempo para as amizades mais surpreendentes.

No pátio de seu silêncio, ergue-se única e feliz a bela árvore dos destituídos.

Nas épocas de opressão, trabalha na rebelião. Nas épocas da glória do homem, no Serviço da Liberdade Subterrânea.

E o que a vida quer do poema, ela o faz.

II

Ela inicia em minha ausência sua viagem apaixonada, sua viagem que enriquece o mistério e dota de precedentes a eternidade. Corre para mim em busca de sua confirmação. Outra vez serei essa praia deserta que devolve e esquece.

E tu, peixe voador, como escaparás para sempre deste mar de neurose e de amizades inúteis?

Se cedo a sua supressão, terei, a cabeça branca, de novamente habitar-te?

(“Festa assassinada, festa assassinada”. Amiúde tropeças com este rumor.)

III

Olhos maravilhosos que às vezes me recordam e que às vezes me esquecem.

No fulgor de nossa separação – azul velocíssimo – eu te saúdo, minha alma, minha estrangeira.

Alva onde multiplicam-se os monstros, alva sempre disposta a transformar-te em poema, alva invisível sempre, perdida entre as névoas e os ferros do mundo.

Sabes que onde a beleza culmina, confundem-se a angústia e ela. (O raio negro nos despe sobre uma realidade que vacila entre o êxtase e o espanto, a vida recuperada e a inexplicável ausência, enquanto me abraças, desesperadamente, sabendo-me vítima, uma vez mais, da dissonância metafísica.)

Nada te defende na noite perfeita.

Vivo na relva de teu desprendimento. Sou o caçador furtivo a quem a noite transformou em sentinela exausta.

Há em minha vida uma espécie de nada que só existe por ela. Há em minha vida um poço de vida. Não o ignoras, me abraças.

Me abraças, para que não esqueça o tempo em que nada sabia de ti.

A alta tensão é nossa pátria. Ali me falas, ali te compreendo.

Como romper a fascinação que nos ata a essa enorme arca inútil que de dia nos nega e à noite nos maldiz?
A intimidade do vulcão é um canto sem relação alguma com o vulcão. Nunca poderás explicar este mistério que te concerne.

Amiúde me confortas: “As experiências mais puras ocorrem no ovo da formiga. Não é humilhante começar por isto”.

Relva, formiga, cascalho: a eternidade tem forma e canta sob teus pés.

IV

A claridade diminui, teu corpo se apaga. A claridade, vítima de minha renúncia, afunda com o tesouro de teus movimentos.

Incrível criatura! Fui fiel a tuas contradições, até na ponta da agulha que penetrava no coração do pássaro triste para matar a serpente.

De súbito, por trás do vidro do tempo, passa tua imagem sóbria, lenta e considerável, mais real que a noite.

E este é o meio-dia em que chega a seu fim a paralisia infernal, causa da esmagadora tristeza que me consumia. Afunda a neve, move-se o horizonte, a música recomeça. E tu, solitária, voltarás agora a converter em bodas os exílios noturnos.

(Esta beleza injuriada, esta beleza fora da lei, longe das casas de comércio, longe da poesia, de seus ferozes proprietários, esta beleza odiada pelos justos, esta beleza simples entre nós, no reverso das grandes páginas, ela queria, queria, oásis infinito, nos ver assim viver.)

E estes são os primeiros fundamentos de teu silêncio.


CLARIDADE

Desnuda, a noite te celebra e protege com suas silenciosas cerimônias. Do fundo do abismo já não vem o terror. Desnuda, as grandes selvas da noite te defendem, os grandes sóis limpos da noite giram ao redor de teu corpo parecido com um relâmpago. Desnuda, já não te nomeio ou te busco, perdi-me nos espaços imensos como uma névoa à borda do nada, para que não te retenha meu amor em meus gritos de amor.

Já não vem o terror do fundo do abismo. Desnuda, descansa nessa orquídea gigante com que todos sonhamos. Do fundo do abismo já não vem o terror.


OS DEUSES LENTOS

O campanário não te dá direitos, respeita a lentidão dos deuses.
Eles não vêm comprar ou vender.
Respeita seus olhos fatigados, seus lábios silenciosos,
a noite em que, sem te ver, sentam-se a teu lado junto ao fogo.
Eles também estão gelados, eles também estão feridos!
Se ocultam seus rostos em suas mãos não é para que passem inadvertidos,
se calam não é porque tenha se apagado sua voz.
Seu caminho é ainda intransitável, está longe o país aonde vão, segue a noite sendo dura.
É verdade: não chegaram quando foram chamados por ti
tocando o alarme sem cessar, porém acudiam,
não sabes desde que remotíssima e escarpada região,
com a esperança de chegar a tempo apesar de seus pés desgarrados.
E ali onde são chamados desta vez também chegarão tarde, oh os desconsolados,
oh os discordantes com o miúdo tempo da terra,
oh os cândidos, lentos, velhos e nobres servidores inábeis.


A TUMBA DE OSCAR WILDE

Que paz nesta rua solitária!
Inscrições de amantes que te amam
apenas quando saem do silêncio.
Ao redor, o cobre do outono,
a claridade vazia do ocaso
e os mortos sem rosto ou memória
na terra que cala,
que vive ainda,
que nada quer ou indaga.

Ao redor o mal efêmero,
o efêmero bem.


A ESTRELA FUGAZ

Cumpro um luminoso e secreto destino,
longe, em um sistema solar jovem e estranho.
Sou puro lírio de fogo e logo já não sou
senão uma claridade velocíssima e tênue
que se confunde com a claridade.

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