Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils
Rodrigo Hernández Piceros foi um dos fundadores do grupo surrealista Derrame e um excelente poeta. No mês de janeiro (2019) ele havia publicado uma nova coleção de poemas, dos quais eu nem sabia de nada quando a notícia de sua morte chegou até mim. O título, Visiones, sueños y mantras, confirma sua orientação orientalista. Em 2006, já havia surgido La perseverancia del sueño, com colagens do fotógrafo francês Romuald Roudier, prólogo de Aldo Alcota e nota de Marie-Dominique Massoni. Nele, Hernández Piceros se colocou na esteira de Pablo de Rokha, Vicente Huidobro, os mandragóricos, Rosamel del Valle, Ludwig Zeller e André Breton. Muito se poderia esperar do surrealismo chileno de Rodrigo Hernández Piceros.
MIGUEL PÉREZ CORRALES
[OS OLHOS CULTIVAM A SI MESMOS]
Os olhos cultivam a si mesmos como trepadeiras que crescem do hábito de uma freira
A espera da mão da sensatez rompe o equilíbrio na cidade de Deus
O tráfico da água põe em perigo os planos do planeta
O pensamento do tigre é tão irreal como uma mordida gigante
Os prazeres de Édipo são engarrafados um a um
A relação entre dois principiantes se dá nas sanfonas do sonho
Um lago traga relâmpagos ao final do tempo
Há tantos transeuntes quanto podemos imaginar
Em um canto, uma antiga igreja evoca partituras de Bach
Os lábios se dirigem ao espelho em busca do olhar interior
Caem todos os sonhos como um diaporama aceso
Caem os sinais nobres dos aprendizes e dos mestres
Caem as lembranças atônitas da primeira idade
Caem os morcegos e suas reputações adormecidas em prantos
Caem os misantropos e os vestidos de noiva
Uma palpitação se enriquece com o olhar de Deus
Uma lula se mete entre as fraldas de uma criança
Um boxeador recolhe suas cinzas no rinque
Um avião enlouquece de tanto ignorar o mar
Havia tanto ruído nos estilhaços do coração
E tantas palavras repetidas no divã do mundo
Que não encontrava as diretrizes que me levariam ao mapa da inocência
Sob o signo de Mercúrio escondido entre os braços
Pensei em escrever com as quatro plumas do firmamento
Pensei na agonia que há entre tanta guerra
Pensei em dormir em uma manhã sem fim
Pensei na oportunidade de sair do desterro
Pensei em todos os filhos do mundo
E aí estava, vazio
Adormecido entre tanto pranto
Talvez haja outra vida
Talvez haja outra vida para os despojados.
[OS PASSOS FURIOSOS]
Os passos furiosos do condenado ao inferno
O sangue envolto em uma garrafa de nácar
Imperatrizes assassinadas por seu próprio prazer
A água que cai pelos conflitos da cidade irreal
Transtornando seus passageiros com baforadas de rum
As bochechas acabadas pelo frio
Um frio que não é deste século
E como podes ver aqui estão as armas e o conjuro
Um conjuro escondido na boca de uma mulher muda
Muda cujo delírio é semear o mar de folhas soltas
Até que a noite se grude em suas costas
E os rastros se percam como sua cabeleira
Os sinos encontram um motivo para o suicídio
Os olhos destroçados após tanta pedra
E um cão que late para a sombra de uma árvore
Para romper as vértebras da paz.
[SENTADAS MURMURANDO SEUS PENSAMENTOS]
Sentadas murmurando seus pensamentos em plena festa
As cidades passam envoltas em fogo
Em seus trajes de indiferença sob o sonho da papoula
Enquanto cravos espetados na ponta dos dormentes
Dobram a esquina conjugada a caminho do passado interior
Para extrair os caminhos opostos do aeroporto mais próximo
Certos suplentes vigiam a porta de entrada
Convertendo-se em peixes que alimentam os delírios
De um pintor decapitado no século XIX
Cujas raízes e cores se deixam entrever nos trigos da velha Irlanda
As câmaras nos palácios imitam a dormida dos mortos
Uma nuvem desce para ensinar o sopro de Deus
As almofadas giram fazendo ruído com as vogais
No subterrâneo se oculta a palpitação de uma mulher
Que desencadeia jogos proibidos pela sociedade deserta
A festa e seus pensamentos passam nesta noite branca
E os pensamentos da festa são três:
Dormir até o próximo equinócio.
[PERECE O TEMPO SUBMERSO]
Perece o tempo submerso entre tanto espaço
Perecem as carícias deixando marcas na eternidade
Perece o ouvido do notívago diante de todas essas ilusões
Em um simulacro semelhante à extinção das espécies
Infartos criados pelo olho de uma colagem
Descobrem mansões recuperadas da luz
Enquanto o eco do sol é uma peça-chave no xadrez
Uma rosa cravada no coração do infinito proclama sua arte poética
Poética que não é mais do que sacar um verso após outro
Como um zumbido de anjos levando às costas o último dilúvio
Perecem as gôndolas e os hipopótamos sob o rosto de Cristo
Perece toda classe de ideologias sem fim
Perece a rota dos navegantes do pólo sul
Há toda uma fauna repleta de eletricidade
Motivos encobertos no absoluto da história
Por onde descem camelos sem seus desertos
E a fisionomia da paisagem é cada dia mais estéril
Nesse agônico porvir se entrecruzam os corpos
Para galopar as naves de fogo na intimidade de uma onda.
[UMA PONTE]
Uma ponte, não necessitamos mais do que uma ponte
Que atravesse os mares do inconsciente
Que golpeie as ruínas deixadas pela loucura
Naufrágios íntimos soprados na distância
De dois corpos à queima-roupa
Nada mais que um refrão que contenha o firmamento
Como os passos do violador de espécies
Nada mais que um grito que retivesse o eco da noite
A espuma surgida de tanta combustão
Em um acerto de pedras manchadas pelo horizonte
Como uma geometria que se desprende da alma
Na aproximação da verdade dos túmulos
(Corredor fechado para os renegados)
Nada mais que um jogo de cartas pelo qual morrer
Nada mais que um sistema arcaico que reflita a realidade da vida
Em um continente submerso por águas tíbias
Por onde navegavam fantasmas do ocaso
Nesta noite tão delirante como o sonho de Deus.