Coral Bracho (México, 1951)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Do primeiro livro ao mais recente, Coral Bracho revelou-se uma das vozes mais singulares e inconfundíveis da poesia mexicana, condição que mais tarde se estendeu ao grande domínio ibero-americano. Sua excepcionalidade reside na raridade de um mundo poético animado por uma abordagem sempre oblíqua das maravilhas e incógnitas da experiência de vida. Os verbos ser e estar, que em algumas outras línguas são indistintos, ganham plena dimensão e se entrelaçam por uma textualidade sinuosa repleta de inflexões rítmicas e semânticas que apenas relativizam as noções de espaço e tempo, aquele aqui e aquele agora que apuram nosso presente. Assim, contra a maré das tendências e a tentação das concessões, Coral Bracho desenvolve há mais de quarenta anos uma curiosa obra poética cuja radicalidade é indissociável da consistência.

No entanto, fiel ao que podemos provisoriamente chamar de estilo, a poesia de Coral Bracho passou por várias transições temáticas. Dessa exploração da paisagem do corpo e de sua crosta orgânica percebida, o material de seu trabalho inicial, ele então migrou, sem renunciar à contenção e à subjetividade, para uma escrita de tinturas catárticas que serviram de salva-vidas, afastando doenças, morte enganosa, violência exorcizante; em suma, abrindo a bússola para a circunstância, bem como para o esboço anedótico e a socialização do poema. E, a partir daí, para o discernimento sutil da cascata de fenômenos cotidianos atrás dos quais as joias do conhecimento volátil estão escondidas. No entanto, durante essas mudanças, a poesia de Coral Bracho preservou um caráter antropocêntrico que vai do somático ao contemplativo por meio da ausculta de várias camadas da consciência.

JORGE ORTEGA
Fragmento inicial de una reseña, Periódico de Poesía, 2019.


DÁ-ME, TERRA, A TUA NOITE

Em tuas águas profundas,
em sua quietude
de jade, acolhe-me, terra espectral.
Terra de silêncios
e brilhos,
de sonhos breves como constelações,
como nervuras de sol
em um olho de tigre. Dá-me teu rosto escuro,
teu tempo esmerado para me cobrir,
tua voz suave. Com traços finos
falaria.
Com areias de quartzo traçaria este rumor,
este manancial entre cristais.
Dá-me a tua noite;
o ígneo gesto de tua noite
para entrever.
Dá-me o teu abismo e o teu negro espelho.
Paragens fundas se abrem
como fruto estelar, como universos
de ametista sob a luz. Dá-me seu ardor,
dá-me seu céu efêmero,
seu verde oculto, alguma trilha
se abrirá para mim, algum matiz
entre suas costas de água.
Entre teus bosques de treva,
terra, dá-me o silêncio e a ebriedade;
dá-me o barquinho do tempo; a brasa tênue
e aturdida do tempo; sua exultante
raiz; seu fogo, o eco
sob o aprofundado labirinto. Dá-me
a tua solidão.
E nela,
sob teu céu de obsidiana,
desde teus muros, e antes do novo dia,
dá-me em uma greta o umbral
e seu esplendor furtivo.


OUÇO TEU CORPO

Ouço teu corpo com a avidez abreviada e tranquila
de quem se impregna (de quem emerge,
de quem se estende saturado, repleto de esperma) na umidade
cifrada (suave oráculo espesso; templo)
nos limos, barragens tíbias, deltas,
de sua origem, bebo
(tuas raízes abertas e penetráveis; em tuas costas
Lascivas – lama brilhante – pântanos)
Os desígnios musgosos, tuas densas seivas
(tolas de embriagados cipós) Cheiro
em tuas bordas profundas, expectantes, as brasas,
em tuas selvas gordurosas,
as vertentes. Ouço (teu sêmen táctil) os mananciais, as larvas;
(capela fértil) Toco
em teus lamaceiros vivos, em teus lodos: os rastros
em tua forja envolvente; os indícios
(Abro para tuas coxas ungidas; transpiradas; partilhadas de luz)
Ouço em teus lodaçais azedos, em tua margem: as apalpadelas, os presságios
– siglas imersas; blastos –. Em teus átrios:
as marcas vítreas, as libações (glebas fecundas),
os fervedouros.


PEIXES DE PELE FUGAZ

A borda é uma boca finíssima, uma cisão aguda e deslumbrante
– o negro como uma forma de luz que marca as margens, espaços entorpecidos, fogos limítrofes –. Na medida em que avança a água se modifica.

A festa estava impregnada de pequenos macacos inabordáveis. Alguém incrustou no lodo uma estrutura quadriculada de ramos ocos e foi como abrir um espelho para as ânsias de vir ao mundo.

Tudo se espalha em amarelos. Os macacos saltam.

Antes, quando eu olhava o tempo como se apalpa suavemente uma seda, como se engolem peixes pequenos. O sol desgalhava do ar feixes de pó.

É um espaço abrupto, porém preciso; a partir de então as árvores.
Os ímpetos irrefreáveis até embaixo.

Os macacos, como disseram todos, eram selvagens; corpinhos sem alças e amarelentos. O jogo era portentoso, desenraizado; as mãos cheias de lodo.

A água brilha, peixe lento e adormecido; em seus olhos a noite é um impulso vago e oscilante, uma talhada escura, brevíssima borda, o delineia.

Porém começa aqui com o consolo de ver a todos excitados, y ver de improviso seus dedos híbridos, infantis.

Vozinhas ferventes que rebentam desertas.

Na margem há um abismo de tons, de nitidez, de formas. Haveria que entrar lentamente, obscuramente nesse instante de dança.

Há uma greta aqui, neste lapso. Na cova as raízes se aderem com astúcia fanática, os ramos se desdobram graciosos.

Ao invés de morder a espessura recente, ou separar as sombras – espumosas e leves – com uma entorse de fauno. De perto, chove.

Por trás os guarda-chuvas se estendem sobre as ondas. Há os de cores lentas e de formas lacerantes. As horas se amontoam. E tenho fé, porque assim é como dizem dos reservatórios.

Pequenos peixes de hera furta-cores.

Havia gatos, insetos, tigres; e quando quiseram abrir as portas, e tudo, desde o templo de entrada estava concentrado em duas linhas; dos fragmentos de feira.

Dançam nas margens.

E retrocedem, porque emergir é a atração sem cais. Onde apoiar a calma de olhar desde longe sem arriscar o tato.

Os desenlaces são alusivos. As sombras se abrem por vezes lentamente.
Região umbral de abrandadas nostalgias, de palavras limpas e secas.

Porém é a terra de sal. Ninguém que regresse ou que meça. Água que drena na certeza e no esquecimento remansos breves de mar.

Resta então longe, longe. E suas mãozinhas fracas e frias como uma aguda destreza emergida de inexpugnáveis espaços.

Daqui, os troncos e o capim brilham sua intacta nitidez Virgem que exala uma cadência tíbia e ensimesmada. Os peixes saltam.

Os macacos saltam. No fundo a luz se estreita e os corpos se apequenam. Desprende-se então a asfixia; uma sede ampla e albuminosa.

Bebem pausados goles de chá.

E se um deles afunda o rosto para ver mais de perto.

Também rastrearam as carpas. O circo; toda a margem era como um incêndio, os animais escorrendo em sarjetas e plataformas.

Para sustentarem-se, talvez. O difícil. Às vezes suas irrupções abrem um espaço laranja.

Então é belo apalpar as águas. O céu volta a se concentrar em azuis profundos. Os verdes crescem até tocá-las.

Estira seus bracinhos elásticos em aliviado giro.

As raízes inalam. Basta deslizar pouco a pouco os dedos sobre as rochas para saber que são lisas e despovoadas. Árvores de cristal.

E é o instante de surpreender a lancha pela quilha e delimitar o fio. Os dedos longos e finos.

Seus olhos límpidos.

Este estupor de seda que se derrama. Porém começar aqui.

A festa – sombra finíssima – lenta. Da cova se desprendem suas vozes como suaves cachos. Pedras suculentas. Desde o sumo do circo. E é o instante; porém começar aqui. Seus olhos ávidos, insondáveis. Em suas bordas descobertas, as vozes, as águas se modificam. Peixes de pele fugaz.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!