Curadoria e tradução de Floriano Martins
Ser e ser sempre a voz diante de todos os acontecimentos individuais e coletivos da humanidade: a poesia é escrita por alguns e por todos, que fazem parte da mesma massa, do mesmo átomo, do mesmo ou diferente gene, da mesma gênese ou apocalipse, apoiado nas asas de todos os calendários: com ele escreveremos as utopias que se alcançam, as inatingíveis e as que não testemunharemos. Eu me junto a Gonzalo Rojas quando diz: Dormiremos pais na poeira com nossas mães que nos fizeram mortais, a partir daí celebraremos o projeto de durar, parar o sol, ser como os divinos?, de repente?
JAVIER ALVARADO
Entrevista ao Festival de Medellín, Colômbia, 2012
A relação linguística com Deus – patente ao longo do livro – atinge aqui o seu ápice: não é um Deus criado pela palavra de um homem, mas é este que é criado pela palavra de Deus. A linguagem serve aqui como um mediador entre os dois. E esta é uma das características distintivas do livro deste jovem poeta religioso que soube rimar o seu ritmo finito com o ritmo infinito de Deus numa composição como o soneto, filho do epigrama e tão vasto e rico em possibilidades líricas como ele.
JAIME SILES
Sobre o libro El pastor Resplandeciente, 2020
A grandeza artística, a maestria e a paixão dos poemas de Epopeya de las Comarcas fazem deste livro uma obra fundamental do nosso tempo e de Javier Alvarado um dos grandes poetas do século XXI. Sua luta ao lado do povo Ngäbe-Buglé contra os projetos hidrelétricos e de mineração que inundariam e destruiriam suas terras ancestrais, é a luta de toda a humanidade por sua sobrevivência e por sua dignidade. Javier Alvarado reúne a poesia com o mundo, devolvendo às palavras o seu valor como arma e como esperança. Simplesmente extraordinário.
RAÚL ZURITA
Sobre o libro Epopeya de las Comarcas, 2017
MARCARIA ESPINOZA
E em seu ventre nos encontramos em um grito compacto.
Eugenio Montejo
Para mamãe
Todos colocados na mesma cena.
Nos cantos os netos
E nas laterais seus filhos (envoltos como uma noiva).
Estou no fundo do seu peito
Nascendo de seu pescoço como um tumor
Ou como uma veia prismática.
Os poetas nascemos das torrentes mais estranhas.
Dizem que o esquecimento vai apertar o gatilho.
Todos nós sairemos dessa nova Lumix: a família que nunca fomos.
A que se partiu como um espelho e onde se disseminou
Como um rio de larvas, a memória.
Aqui todo mundo mostra seu melhor sorriso
E outros a sua dissimulada alegria, ocultando a decadência mais notável.
Uns após outros iremos faltando.
Aqui posamos com seu único retrato, o que desconhecemos.
Quem traçou os caminhos da louca?
Quem determinou os nascimentos no ar
Onde os átomos de sua loucura maternal se juntaram?
Aonde foi aquele avô perverso que rasgou
Os gritos, a fome e o riso opaco de seus filhos?
Ela revoa pelos céus de Las Minas
Como um capacete em repouso,
Como um vapor de cristal no arco do som.
Em todas as águas ela nos busca sem encontrar
Todas as teorias que morrem nos olhos.
Onde morou? Aonde foi? Onde esteve?
Caminhava com uma bengala e fazia
As figuras moldadas pelo pó,
Andava em um terno limpo com longas tranças
Tecidas pela nervura da noite.
A fumaça nunca entrou em seus olhos
E a ouvíamos cantar à distância
Avó: sigo moldando-te a cada passo por essas terras
Com um cordel de fúria
Onde não tenho nariz ou olhos ou mãos na opacidade para te apalpar
Para ser como o arroz que cresce como uma mão de pilão que suga gritos
Um sebo dos bezerros arrepiados
Aconchegos que dançam no espaço até que dominem o frio.
Se eu tiver que te imaginar nas sombras
Vestindo a mortalha da madrugada em um hospício
Traçando uma fábula por esse Matías Hernández onde te ouço chorar
Como uma menina abarrotada de bonecas
Onde há asfixia e musgo, ou sinos abafados sufocados pelo lodo
Por uma bacia seca que rebenta na puberdade do fosso
São estações reversas que encontro
Em teu fervor de redemoinho.
Tens muito medo do enfermeiro negro.
Não sou um coelho para comer tantas folhas.
Eu não estive aqui, estarei em uma casinha de barro
Com comida quente e a infância de meus filhos,
Pobres, mas radiantes e mordendo os tubérculos da terra.
Olhe para mim aqui, paciente psiquiátrica
Com arquivo desaparecido.
Quem pode decifrar ou imaginar a dor
Que se prostra no cérebro dos loucos?
Aqui esteve e se sentou para chorá-los nos resfriados
E febres do dia.
Jamais imaginou a barba de seus filhos ou as primeiras menstruações de minha mãe.
Queremos imaginá-la como era
Alta e bela como a esfinge
Ou como uma deusa do Olimpo ou uma flor do Espírito Santo com uma saia.
Ela acabou deslizando em um gemido agrário.
Foi dar em Ciprian e não sabemos
O segredo de seu túmulo.
Posemos todos. Ela está aqui.
Tem o ventre avultado, bem protuberante.
A ela regressamos.
Retornamos a seu ventre
Com um pranto compacto.
PARA FAZER AMOR EM PONELOYA
Para fazer amor, evite que o sol muito forte incida sobre os olhos da moça, muito menos a sombra é boa se o dorso do amante arder para fazer amor
Antonio Cisneros, Terceiro Movimento
Não há nada melhor do que fazer amor em Poneloya
Para chegar é preciso comer um reforçado desjejum,
Procurar no teto até encontrar aquela ambrosia que a fruta do dragão irradia,
(O punhado de pétalas que encontram uma boca uma língua uns mamilos
Até que se digam templo). O suco de fruta é o melhor afrodisíaco,
Sobretudo se queres decifrar o desejo nos olhos da donzela. Essa primeira e última imagem de teu corpo entrando em mim aos poucos.
Eu celebro o sal. Celebro a água; agora que sou inesgotável, que sou um quebra-mar
Com essa certeza da rotação ou do naufrágio; fazendo-nos ver a nós mesmos na refração da luz,
Espremendo o fogo da polpa, sendo entre os dedos o melhor lubrificante, se a carne não abrir,
Como o batedor antes da execução da mão, com fundo de ultramar ou de marimba.
Não importa se o leito marinho é áspero ou suave.
Um dos amantes presidirá a cavar uma cama profunda
Para residir entre os caracóis e as garras lascivas do caranguejo;
Alguns mais austeros sentirão brandas
As conchas molhadas de Las Peñitas;
Porém não comeces a marcha
Nem o susto
Se te surpreende a acusação de uma onda na Peña del Tigre.
É preciso caminhar pela orla e ir deixando as roupas excitadas por descuido.
Ninguém pode evitar o sol do litoral e que dessa vez irrite as costas
De algum amante
Disposto a desovar como os peixes.
Há que fazer amor em todas as praias do mundo
E deixar que os sexos se afoguem e respirem
Nesse dilúvio genital e planetário.
Venha para este mar e afunda.
Escreve o teu manual de instruções
E faz amor em Poneloya.
HÁ UMA VILA FEITA A PARTIR DOS POEMAS DE LÊDO IVO
Lêdo Ivo é um velho que mora no Brasil e aparece em antologias com cara de louco.
Juan Carlos Mestre
Os caranguejos caminham sobre Lêdo Ivo
Sobre as casas e os sonhos
Ou os promontórios na terra de Maceió,
Já se tornou mar sob os barcos
E desatou suas palavras como gaivotas no cais
Assobiando dessa vez aquele acorde fúnebre para as carnes de Hermengarda
Para essa embriaguez que perfura as boquinhas dos morcegos e as bitucas de cigarro
Na caverna mais escura onde as almas tilintam como filhotes,
Onde a escuridão está manchada com aquela iridescência de suas constelações
Repreendendo a ressurreição do galo,
O leite estelar das esporas
E a plumagem impenitente enfrentando-se entre os pátios e as casas marinhas
Onde os meninos se sentam no lombo do caracol
E as meninas fixam sua beleza nas estrias teológicas das conchas.
Esta é a tua aldeia onde um menino chamado Lêdo começou a escrever seus poemas na areia
Nas pétalas da cana e nos engenhos onde as pessoas suam
O suco imemorial da cana
O suco equinocial da cana
O suco demencial da cana
O suco sexual da cana
Junto com o aroma infinito do cacau, junto com flores do cacau, junto com os grãos do cacau,
Onde
Desta vez clareias sobre as pedras, sobre o testamento de uma negra dançando samba
Silva que te silva a valsa fúnebre
Para as carnes de Hermengarda
Então és tu mulato caminhando sobre as nucas vacilantes dos caranguejos
Sobre uma furiosa fogueira de água, sobre as palafitas sacudidas
Pela espuma reinante,
A tua palavra se abrindo como um leito de folhas,
Como um travesseiro de árvores sobre esses sonhos amarelados
Que pegam a memória da estrada e terminam nos pés
Dos bebês e logo começam a correr
E guincham como abelhas ou borboletas ao cuidado da neve profunda,
Da neve inventada e do sol que ordenha os milagres das cabras
Onde há bruxas e mulheres explicando a redondeza da terra
Com rituais desenhados nas esferas monásticas do coco
E jovens extraindo cardumes de peixes de seus corações.
Os caranguejos caminham sobre Lêdo Ivo na terra de Maceió.
Lá no brasil tem uma aldeia
Onde aprendeu a escrever poesia
Uma criança selecionada com cara de louco,
Separando as pátrias das línguas,
Emigrante e imigrante da língua portuguesa
Tornando-a terra,
Tornando-a suco de cana
Tornando-a cacau,
Tornando-a caranguejo nas praias de Maceió.
Lá no Brasil tem uma aldeia feita a partir dos poemas de Lêdo Ivo.