Maria Antonieta Flores (Venezuela, 1960)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

O poema nasce e morre todos os dias. Você nunca termina de saber como um poema pode se materializar no momento em que aparece. Por isso, atenção e vigilância devem ser desenvolvidas, as portas e janelas internas devem estar sempre entreabertas para que o poema apareça. De acordo com o que a poesia me permitiu viver, o poema nasce de muitas maneiras. Talvez a minha favorita seja quando brota sem aviso e brota inteiro. É um milagre. E estou surpreso que esteja lá, que tenha estado dentro de mim. Outras vezes, o que mais sucede – porque você tem que saber disso e tem a ver com o trabalho –, eu procuro o poema. Para isso recorro aos lugares entreabertos, à contemplação, ao silêncio. Um poema não nasce no meio do barulho.

Agora, saber quando está completo ou acabado é algo que também está sempre sendo revelado. É um conhecimento que muito deve à intuição e à paciência. Você tem que ouvir o poema. Às vezes nasce inteiro e outras vezes é destilado. Claro, muitas vezes já acreditei que o poema estava terminado e quando estou revisando eu realmente consigo terminar ou acho que acabo. A escrita poética é um território de dúvidas e nunca há respostas definitivas. Não é um lugar para precipitação, requer pulso e temperamento. O poema é território de amantes sábios. Nunca o de quem só domina a técnica.

[…]
O desejo excessivo de reconhecimento pode ser fatal e o afirmo a partir da ideia de que o reconhecimento é necessário, mas deve ser sustentado por um trabalho constante e pelo trato com os mistérios da poesia. Fico comovido com certos clamores excessivamente antigos de reconhecimento e fico comovido com eles porque refletem um desconhecimento da roda implacável que marca a passagem das obras criativas. Este é um negócio difícil, não tem nada a ver com a fantasmagoria de likes e corações. Demorou cinco anos para que meu primeiro livro, El señor de la muralla, fosse totalmente reconhecido pela crítica, mas não parei. Continuei escrevendo, insistindo em palavras e poesia, como continuo fazendo até agora.

[…]
A imagem é o espaço comum. Uma revisão superficial revelará uma longa lista de poetas que também foram dramaturgos e isso é um sinal de que os dois gêneros estão ligados. O teatro é uma paixão antiga que me acompanhou durante toda a minha vida. Lembro-me de minha primeira leitura significativa do gênero na adolescência: Los árboles mueren de pie, de Alejandro Casona. Eu era um fervoroso espectador de teatro e em 1996 lembro-me de ter escrito alguns diálogos que, talvez, à luz de hoje, estivessem mais próximos do poema dramático. Mas nunca pensei na possibilidade de meu texto ser encenado. Talvez eu não tivesse forças para trilhar esse caminho naquela época. Eu não vi isso. Em 2017, essa oportunidade me foi dada por Federico Pacanins, que havia sido júri do 1º Concurso de Transgêneros da Fundação para a Cultura Urbana em 2001, que sagrou vencedor meu livro Índigo. Acho que é uma forma útil de expressão para mim agora. Vivemos uma tragédia e o mundo interno coletivo e o meu próprio mundo foram povoados por histórias muito tristes e dolorosas. O teatro, o palco, os atores podem atuar como catalisadores para ajudar a elaborar tantos sentimentos e emoções reprimidos e não processados naquele momento catártico que o teatro cede com a força redentora do aplauso. Diante de uma tragédia coletiva, a catarse coletiva pode ser curativa. Por sua vez, a poesia atua em nível individual porque o leitor a experimenta como algo mais pessoal, mais íntimo.

MARÍA ANTONIETA FLORES
Trechos de “El poema es el territorio de los amantes sabios”, entrevista a María Cordero


María Antonieta Flores, nascida em 1960, absorveu os fermentos e o ar poluído do nosso mundo dominado pelo industrialismo brutalmente utilitarista e não só começou a somar os modestos triunfos dos concursos de poetas, mas também se descobriu mesmo na dupla paixão secular da poesia e do amor. Seus poemas, além de sedimentar e inspirar-se em mitos significativos, circundaram o domínio sagrado e profano da paixão amorosa erótica, seja como protagonista direto, seja por meio de figurações míticas. Em todo caso, confessional ou descritiva, uma figuração poética feminina subjugada ou devorada pelo amor erótico ganha vida: presa da caça, cativa da parede, ou da memória, personagem histórico de Hagar, no deserto de Bersebá, exilada com o filho que teve do prolífico e adúltero patriarca Abraão.

[…]
Instada por sua verdade interior, María Antonieta Flores, após Deletérea em suas três versões, abordou um ensaio no qual expôs os termos opostos pathos e hybris, da irracionalidade sensorial e da racionalidade. Com acerto, partiu dos antigos gregos, que em sua tragédia incitaram à contenção diante dos gatilhos e titanismos do pathos. Antonieta Flores gira em torno dessa dualidade, sem resolvê-la, optando constantemente pelo desencadeamento apaixonado, que depura de muitas de suas infâmias para transformá-lo em pura chama sagrada de paixão amorosa. Acerca de sua vocação de vestal ou bacante, mas, apesar das inúmeras citações e do seu verbo compreendido, me convenceram da sua cultura e sentimento, a favor do equilíbrio, de uma medida criativa.

JUAN LISCANO
Fragmento de “La pasión poética de María Antonieta Flores”, de Primicia, Caracas, 1998.


ANTIGA MORADA

eu venho de uma estirpe de mulheres solitárias
eficazes
irreprimíveis
derrotadas antes de nascer
pela morte
sempre guardadas
como sementes que o vento arrasta
entregues ao sacrifício da vida
sem futuro ou presente
sem vastidões que as resguardem
aprendidas em solidão
elas mesmas amamentando-se
fazendo de cada dia uma vitória estéril
mulheres que falam de muito longe
afogadas em sua torpeza e na névoa do desejo
mulheres solitárias que arruinaram suas mãos
no duro ofício que lhe entregaram as prendas brancas
e perderam seus dias entre tosses e dores no peito
conhecendo tudo da pobreza
administrando os silêncios e o alimento diário
entrando nas jornadas
com uma irremediável dor
estirpe sem grandes ambições
doces mulheres que amaram sem correspondência
e foram uma após outra
mão a mão
fundando a cadeia do desamparo


PLENOS SE OUTORGARAM

sem discussão
amada

com equívocos
sem acertos

assim prova
aprendizagem

o lombo acariciado de uma besta
a minha aspereza

domesticada pelo amor que passa

com rudeza já me cultivaram
apenas espigas eu dou ao vento


[NAS DELICIAS DAS MÃOS QUE SE JUNTAM]

nas delicias das mãos que se juntam
exalam as súplicas piedosas
entre as transparência do clarear deste dia
aquilo que eu nunca te disse
minha frágil condição

de fêmea
este corpo que se adentra inquietando o tempo

não a mesma nem no recorrente gesto das mãos ou na melancolia do esterno para que ali seduzas a dureza que sou e este pranto que golpeia a si mesmo nas polpas dos dedos

cheirada e sem películas e não em silêncios mas sim no clamor

sob tua mão sufocando esta som de chuva

dos incensos
a luz me escapa e se perde a caminho de tua carne
até o rastro da alma

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