Omar Castillo (Colômbia, 1958)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Na América Ibérica os poetas e criadores nascidos nos anos 1950 tiveram que viver uma época de paradigmas que se rompem com o sonho das origens humanas. Um tempo se aprofundando nas histórias onde jazem antigas flores de fogo, cujas pétalas crescem em sílabas com o impulso de suas brasas.

Um momento abrupto e fascinante. De programas como aquele em que um antigo Sufi está impresso dizendo que a lua é o espelho da memória do tempo. Diante do qual é possível limitar que, se assim for, o sol é a casa onde arde tal memória e depois de um silêncio, acrescentar que as palavras são o crepitar daquele fogo e que com elas os poetas procuram esculpir o previsível e imprevisível este tempo.

A poesia é o espanto revelador do mistério da realidade. E o espanto poético se funda nas palavras, em sua força cognitiva, um ímã que apreende e revela o momento em que a vida se instala. Assim, um poema emerge como coreografia verbal no vácuo, forjando as raízes onde a vida nutre a escuridão e o brilho do ser.

Um poema é um lugar. Chegar a um poema é nos iniciar na memória vívida de seu momento. Portanto, deixemos a escrita viver e se espalhar na fala de quem permanece alerta. Viver. Nomear. Ser nomeado. No poema, a realidade penetra o cotidiano com seu maravilhoso, colocando o ser humano diante do inesperado de sua existência.

No entanto, por mais de 200 anos a poesia foi inevitavelmente sombria no resplendor de seus iluminismos, a tal ponto que muitos a consideram enigmática, como quando no final do século XIX, em uma cidade da Europa, aquele homem mítico chorou abraçando o pescoço de um velho cavalo de carga caído no meio da rua, enquanto sua mente continuava a afundar nos pontos inéditos onde o pensamento pode alcançar o esclarecimento do início da realidade e seus fios ontológicos.

Por tudo isso, a minha noção de poesia é alimentada por todas as poéticas possíveis para a realização de sua escrita. Acredito que meu tempo é um tempo para onde convergem todos os tempos vividos e imaginados, mesmo os impossíveis. Acredito que o humano deve ser tomado como um todo e não nas praças onde é valorizado em benefício de quem busca aproveitar a fragmentação de sua dignidade.

Assumo a escrita de um poema como um risco de penetrar em uma visão e uma noção de mundo. Meus versos acontecem nas bordas da realidade buscando interpretar a dramaturgia da vida, seus limites e abismos. Assim, cada palavra, cada analogia, cada metáfora que utilizo para as imagens que compõem o desenho verbal de meus poemas, amplia a minha relação com o mundo e me enriquece para os cenários onde a vida se dá.

OMAR CASTILLO
“Fabula de las cicatrices”. Esferas del tiempo, 2020.


BORBOLETA INCENDIADA

A borboleta incendiada, devastada cai, descubro-a atravessando o ar denso e pegajoso.
A figura em bicicleta se perde entre os incendiários que espalham a área na paisagem que paira esta tarde.
Palavras, nas ruas os rostos suados de cor única. A borboleta devastada rola em suas horas.
Alguém planeja o movimento perpétuo, cometa reclinado no abismo do ar.


RELATO NA CURVA

Descubra o ninho perdido de teu homem.
Olha,
A curva em tua casa permanece intacta,
As escalas
Mantêm o mesmo demônio assustador em teus sonhos.
As begônias silenciosas são mantidas nas varandas.
A mulher ainda está se banhando nua atrás das rachaduras.
Tu mesmo ainda manténs o olhar fixo, o bolso bordado de tua saia laranja.
As andorinhas acariciam o último desígnio de luz solar.
A criança extraviada se regozija no bosque de samambaias.
Aquele homem de bruços no pavimento, ainda estão jorrando constelações das amplas feridas de suas costas e pescoço.
A velha recolhendo o fruto carnudo para a tua boca.
Descobre o ninho migratório de teu homem.
No arco suspenso permanece,
Apenas a criança saudosa não retorna do bosque de samambaias
E a mãe-antiga
Dorme acariciando fósseis e ecos.


USURA E OBSCURANTISMO

A cidade, uma cicatriz delirante,
Presa como uma diáspora sujeitada
Detrás das gazes de asfalto e adobe;
A trama de seu comportamento se dá
No inverno ou no verão, pelas manchetes
Nas telas ou nos jornais;
Através de pedestres, de boca em boca
Como um ventríloquo que prolonga seu fio
Até a medula de sua vítima. A cidade
É uma cicatriz que não para de se expandir,
Ele se ergue no chão como se fosse entre
O olho de uma agulha cega que fia.
Quem, por trás da lente, desfrutam
As receitas da decomposição?


O EXILO NÃO É IMPOSTO

Aprende também a linguagem do império,
Existe entre aqueles que a têm em comum.
Em qualquer caso, não te esqueças do verbo que dá origem
Às tuas palavras. O geográfico não é suficiente
Se não pronuncias a língua onde estão baseados
O silêncio e as vozes que te cercam.
Diante do exercício esmagador do império,
Toda resistência é falsa se ignoras a língua
De onde te é propícia a multiplicidade
Que torna o universo um som único
E complexo em sua ramificação e origem.
Se não deixas que comecem as tuas palavras
Não lhes será possível te impor qualquer prisão.
Assim, todo invasor resulta em exílio.


TAROT DE OLHOS

Teus olhos no rio levado pelo inverno
Em uma manga madura que acabou de cair da árvore
Nesse canto onde o dia tantas vezes se esconde
No aroma do café que me disponho a beber
Teus olhos por trás dos pedestres que cruzam A Oriental
E seguem pela Praia
Nesta manhã em que o sol irrita
Nos paralelepípedos da rua Junín
Nas paradas de ônibus
Ao pé dos semáforos
Teus olhos nas raízes que as árvores deixam ver
Na fachada de ladrilhos da catedral
Virados sobre a fonte do parque Bolívar
Onde a lua mostra sua passagem
Teus olhos na cidade cujas luzes a consomem
Até jogá-la em um sonho surreal
O mesmo onde encontrei
Os teus belos olhos de sempre

1 comentário em “Omar Castillo (Colômbia, 1958)”

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