Renée Ferrer (Paraguai, 1944)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Creio que minhas afinidades não são exclusivas. Cedo me senti muito próxima a Pablo Neruda, a Amado Nervo, Alfonsina Storni ou Delmira Agustini, sobretudo no início, para depois chegar até um Gonzalo Rojas, um César Vallejo ou um Ocatvio Paz. Não tenho muito claras essas influências, ainda que saiba que existam em todo escritor, porque sempre tentei transitar em vários caminhos.

Na América Latina não existe, em geral, uma relação muito estreita entre os poetas; o conhecimento, salvo a leitura dos nomes consagrados, é bastante limitado. Cada país é um mundo fechado em si mesmo, sobretudo o Paraguai que sofreu a clausura tanto geográfica como ideológica. Talvez por aí devam buscar-se as razões. Nosso panorama se agrava pelo isolamento que sofremos, a carência de revistas literárias, as quais chegam de forma irregular, e a uns poucos assinantes, os escassos intercâmbios intelectuais. Porque essa falta de relacionamento e aprofundamento das obras dos autores da América Latina? Não creio que a resposta seja simples. As distâncias são enormes e os canais de comunicação deficientes. Mas ainda com os países limítrofes há uma falta de fluidez nas comunicações, uma grande dificuldade para editar fora, um grande individualismo também, que afortunadamente está se rompendo graças aos encontros e congressos de escritores, onde podemos trocar livros e experiências. Este não é, todavia, um sistema que renda frutos maciços. É impressionante a quantidade de escritores que existimos e o pouco que nos conhecemos e nos lemos.

Na realidade esta cultura do exílio, como a chamas, é uma característica da literatura paraguaia, já que uma parte importante da mesma se escreveu no exterior e a outra, a menos conhecida e valorizada, dentro de nossas fronteiras, numa sorte, ou má sorte, de exílio interior, o “inxilio”, como disse alguém referindo-se a esta clausura que nos marcou de uma forma muito aguda também aos que ficamos dentro. E te direi como, pelo menos a partir de minha ótica. Vivia-se, ou vive-se (porque as seqüelas do isolamento não se superam tão facilmente), como separados do resto do mundo, como num espaço de não pertinência, desconectado da palpitação cultural do universo, como num tempo atrasado, o qual nos custa ainda por em dia. Ainda que não deixássemos o país, é como se o tempo do resto do mundo nos deixasse. É certo que as comunicações atuais e a abertura política têm ajudado a superar de alguma forma esse estranhamento de tudo o que acontece neste “agora”, que parece continuar chegando atrasado.

[…]
A dificuldade de fazer conhecer nossas obras, a ignorância quase total, em certos casos, da existência de uma literatura paraguaia dentro de nossos limites geográficos nos chega como uma porta que se fecha deixando-nos dentro. Claro que estas reflexões se dão a partir de uma pergunta, talvez não chegaríamos a elas conscientemente. É curioso que Josefina Plá tenha escolhido este exílio interior, que para ela era um exílio de sua própria terra, mas há que levar-se em conta que este país se meteu até a medula como um sonho, ou pesadelo, do qual já não é possível desentender-se. No meu caso, sobretudo no começo de minha vida literária, vivi bastante isolada. Minha casa da infância era também um território, de certa forma, fora de contexto desta paragauiedade que fui assumindo com o tempo, e a primeira parte de minha obra, apresenta, pelos temas que toca, uma busca desta universalidade que é como um anseio imperioso de participação em tudo. Ser parte da humanidade, ser um cidadão do mundo, refletir sobre os problemas deste mundo, é uma determinação que modelou as primeiras tramas de meu trabalho criativo. Só mais tarde veio essa consciência de pertinência a este lugar e com ela a desesperança de exílio interior, este saber que tudo nos resultará mais difícil porque estando dentro, todavia estamos fora de um sem número de possibilidades.

[…]
Penso que toda criação está baseada nesse recorrido interior que abarca tanto o terreno dos atos e as circunstâncias como o campo onírico donde se debatem os anseios e conflitos que se disputam em nosso ser. Não posso imaginar uma obra que não extraia deste canteiro o germe da vida, nem autor(a) que poetize no vazio, de costas para a realidade íntima ou externa. Eu creio que há uma estreita relação entre nossa paisagem interior e tudo o que escrevemos, assim como influem também as situações em que nos vemos envolvidos ou o entorno, que em certa forma nos condiciona. Quando penso em minha obra enquanto uma grande correspondência com meu itinerário pessoal por um lado e com minha postura frente à situação do mundo em geral e de meu país em particular. Fatos como o Holocausto, o perigo da catástrofe nuclear, com o correspondente perigo da destruição total da humanidade, a deterioração do meio ambiente, a ditadura que sofremos no Paraguai, a situação dos camponeses sem terra, meus sentimentos pacifistas e de igualdade diante dos diferentes grupos humanos, meu convencimento da possibilidade do amor universal, de uma fraternidade cósmica, a solidariedade entre os diferentes reinos da natureza, são temas que, além dos intimistas, se encontram em minhas obras tanto poéticas como narrativas, e dão certamente uma leitura de nosso tempo. Penso que o ser humano está em uma constante evolução; que somos seres inacabados que avançamos, ainda que pareça mentira vendo as atrocidades que se cometem diariamente, até um estado de perfeição.

Estamos na Terra porque somos humanos, porque temos defeitos, porque somos imperfeitos e cometemos erros, senão estaríamos em outro dos mundos possíveis. Se o universo é infinito não vejo porque a Terra teria que ser a única opção, e se parece que não avançamos é porque os seres que se elevam na escala espiritual passam a outros estados ou a outros mundos, que eu não sei como são, porém é evidente que devem existir em algum rincão deste cosmos ilimitado. Que nós não possamos apreendê-los com nossa inteligência limitada não quer dizer que não existam. Simplesmente temos acesso ao que nos corresponde segundo o grau evolutivo em que nos encontramos; um cachorro não sabe nada de contas bancárias, mas elas existem; nós não sabemos muitas coisas dos círculos espirituais superiores porque não chegamos à compreensão necessária. Então o ser humano peregrina na eternidade, entra e sai deste tempo enquanto se dirige até outro que para o momento é uma incógnita.

RENÉE FERRER
Fragmentos de “Diversos caminhos da poesia no Paraguai”, entrevista concedida a Floriano Martins, Escritura conquistada, 2001.


TARDE DE INVERNO

Sob o ruído do secador
com um livro fechado na mão
ainda convalescendo daquelas febres
e com os restos do naufrágio impregnados
de um cheiro de alcova vazia
os pensamentos
sem saber para onde ir
se desorientam
como rebanhos de beijos migratórios
que ficaram sem revirar-se nos lábios
e agora partem para a estação fria.


AS PERGUNTAS DO ESPELHO

Sabes o que se passa
sob essa pela que a recobre,
por onde anda o cérebro
quando se dirige até o norte desejando ir ao sul,
onde brota a fonte de seus gestos
se é que existe uma fonte
em alguma parte dela
onde pudesse manar o tremor silenciado?

Em que andaime ficaram seus olhos
que não distinguem uma sonda
do voo dos pássaros
ou talvez
habilmente o ignoram
como aquelas bonecas de cílios de vidro
que veem passar a vida sem vivê-la.

Se adoras os poemas
por que vais ao mercado de estranhezas?
Responde
                                  mulherzinha
quem é a mais falsa de todas as mulheres?


NOITE DE CAMPO

Estendida sobre um catre
absorta nos ladrilhos que cerceiam a calma
da noite em vigília
depositária fiel da luxúria na garganta dos grilos
do chamado premente dos ninhos
e à inteira disposição do firmamento
absolvida estou
pelo sereno tribunal das estrelas.
Calada de absoluto
Sob a coberta do sossego que aumenta o pestanejo
de cósmicas abelhas
mitigado fel de minha memória com o brilho
estatuário de seu voo suspenso
e atônica ao crivo da intempérie
apalpo a voz
cedo à reclamação matinal do universo.

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