7 Poemas de José Carlos Breia (Portugal, 1930)

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José Carlos Breia nasceu em 3 de Maio de 1930. Leu muito e muita música ouviu. As artes plásticas fascinam-no tal como a arquitectura. Viajou pela Europa e pela América do Sul. Trabalhou, naturalmente, pois sem dinheiro não se vive. Reformou-se cedo. É na altura em que se reencontra com António Luis Moita que este lhe prepõe, para ocupar o tempo livre, que junte todos os poemas que tinha feito e os publique. Surge assim LUGAR NENHUM no ano de 2000, dado a lume na Assírio e Alvim. Continua a escrever e tem neste momento mais três livros não publicados: “Outro lado”, “Das pequenas coisas” e “Poemas do chão”.


DICIONÁRIO

Este é o livro
onde as palavras
cristalizam.

Do livro agora aberto
– do preciso rigor das suas linhas,
retiro algumas dessas formas frias.

Rodeio, lento, a sua geometria.
Paciente, procuro, ponto-a-ponto
a cruz axial em que se animam.

Os pequenos cristais
revelam ângulos, planos
que a sua dura forma escurecia.

Secreto,
fecho depois o livro em que o poema,
recomeçado sempre,
ausente fica.


RETRATOS

Olho os retratos
que nesta velha sala me rodeiam.

Entre quadros e livros muito lidos
eles cercam-me
e pedem-me cuidados:
que lhes tire o pó dos vidros
e a mancha das molduras.

Brilham agora, limpos,
mas ainda inseguros.

Eles querem também que os reconheça:
querem, da minha vida,
a vida que me resta.

(Mesmo o meu gato preto,
por quem chorei talvez
mais do que por ninguém,
me lança a fina fresta dos seus olhos
pedindo-me que o deixe ronronar).

Mas são, contudo, os vivos
 os que ainda se arrastam lá por fora
que mais me preocupam.

Eram belos e plenos
seus corpos.
Pareciam eternos.

Mas há muito morreram
nos retratos
que nesta velha sala me rodeiam.


DAS PEDRAS 1

A pedra na mão.
Na minha mão

Disse-o Décio, o romano,
que com ela matou.
Disse-o o nómada Ben Zir
quando ao meditar
a rolou.
Devraux, o arqueólogo,
disse que se tratava de…
Von Zeint, o geólogo,
contestou

Se enobreceu túmulos
ou palácios
não sabemos.
Mas,
talhada por mãos hábeis,
foi arte,
é vida.

Passou por muitas mãos
e de todas, um pouco, ficou.

A pedra na mão.
Na minha mão.
Milhares de histórias
entre os dedos.


O MOCHO

A placidez informe das coisas.

Um rufo de asas
entreabre
o silêncio.

Teus olhos estelares
regressam.

Medito
no início dos astros,
na imensa noite
que antecedeu
o tempo.

E pergunto-me:
(sábio na fábula,
mau agoiro no grito)
de que avatar descendes?

Ou és transmutação?


EURÍDICE

Entrei por fim na casa abandonada.

Quanto tempo terá ela levado
a tricotar as teias pelos cantos,
a nublar vidros
velando espelhos, rostos e retratos?

Dados dois passos,
sob o ranger das tábuas e das portas,
vi
o que ficara de um vestido
no rasto da fuligem,
o rasgado verde resto da coberta
a resvalar da mesa,
as cadeiras partidas.

E, ao rodar a mão por um desenho
que o mofo recamara,
abri no espesso as linhas de uma face,
tirei do pó
uns olhos apagados.

Abertos, lentamente,
em mim pousaram
com tão funda ironia,
que, sem olhar pra trás,
abandonei-a.

E tudo se ocultou
em sucessivas dobras:
tempo, casa, razão,
cuidados meus.


O NOVO ALADINO

Se tivesse uma lâmpada
como tinha Aladino
que iria eu fazer para Pasárgada ?

Ser amigo de rei
tem desvantagens.

Não precisava de um rei
para escolher a cama desejada
e nela a mulher
com quem bulisse.

Primeiro,
queria uma casa com relvado,
entre campo e praia,
sem vizinhos amáveis
que são uma chatice.

Amigos
isso sim
quantos quisessem vir.
Mas nunca mais de dois
de cada vez.

Queria
uma cama de água
com comando,
para sentir a calma das lagunas
a lua das marés
e dos riachos
o sussurro fresco.

A mulher é que era o drama:

olhos que falassem fundo,
esguia e louca
feita malagueta,
frescura de água de coco
e o doce da carambola.

Mas nada de escravatura.

Nua ou velada,
só viesse
quando o ritmo lhe pedisse
ou a isso fosse levada.

E pouco mais queria.

Escrever por acaso.
A melodia
do meu galgo solto.
E, na iridiscência
do meu copo
o reflexo inquieto
da memória.


A CASA

No caminho
olho as janelas
donde já ninguém espreita
e as portas
a que só o vento bate.

O homem
levantou as paredes.
pôs as telhas,
e por baixo do fumeiro
a pedra do fogo
e a panela de ferro.
No canto mais escuro
escondeu a cama
onde dormia
e fazia os filhos.
Arroteou a terra,
fez a horta
e mais tarde a cerca
onde o porco
chafurdava os restos.
Dos filhos, muitos,
só ficaram dois:
um áspero e rude
a quem o pai deixou as cabras
e outro que cedo morreu.
Os restantes perderam-se
por oficinas, fábricas,
áfricas ,que a imaginação debulhava
em frutos, terras uberes
e o bronze das mulheres.
O último deixou a casa
a que nada o prendia.

No silencio que só os ratos roem
pairam fiapos do riso
que a madeira range,
das lágrimas
que ressumam das paredes.
Apodrece o esqueleto.
Vai ruindo
a velha casa.

Já ninguém se lembra
de quem lá vivia.

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