9 Poemas de Viviane de Santana Paulo

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Viviane de Santana Paulo (São Paulo, 1966),  poeta, romacista, tradutora e ensaísta. Estudou filologia germânica e românica na universidade de Bonn. É autora dos livros, lebendiges wensen namens gedicht – vom satelliten aus gesehen / ser vivo chamado poema – visto do sattélite (coletânea de poesia bilíngue – Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023); Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) ePasseio ao Longo do Reno (Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Foi membro da equipe editorial da ila-latina, revista de cunho social-político com sede em Bonn (Informationsstelle Lateinamerika e.V.). Seus textos foram publicados em revistas e antologias na Europa e América Latina. Traduziu diversos poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Ron Winkler, Josef Kafka, Sarah Kirch, Paul Celan, Gottfried Benn.


[A BOCA ABERTA DO VULCÃO]

a boca aberta do vulcão Mombacho
engole nuvens pela manhã até desaparecerem
nas primeiras horas a paisagem úmida de verde suculento
transpira névoa prateada na selva suntuosa
as aves cantam ocultas nas folhagens obscuras
sobre a cabeça de um dragão de mil narizes e se chamam fumarolas
as fumarolas expiram fumaça de enxofre
                                     com cheiro das entranhas da terra
a garganta do vulcão adormecido é sufocada pelo verde forte
porque enquanto ele sonha o verde aproveita a realidade
e as orquídeas ficam penduradas como brincos
nas orelhas das árvores
o vulcão dorme e ronca a ardente fumaça das fumarolas
o que será que um vulcão sonha?
será que sonha com o crescimento das ilhas verdes?
será que sonha com as lágrimas do oceano?
será que sonha com o carinho do fogo?
sonha com os despojos da profundidade mais magnânima?
com as rochas líquidas das trevas incandescentes
inerentes aos segredos e às queixas subterrâneas?
sonha com o quebranto incendiário do âmago da terra?
ou sonha em compreender o lento voo e as mínimas cores
da joaninha pousada na couraça da terra?
o que sonha o vulcão ruminando hesitações de milhões
de anos?


[DEIXEI DE GIRAR]

deixei de girar no meu próprio eixo
mas ainda rodopia o pião-folha com a ventania
um resto de ingenuidade persiste
como ressaibo adocicado na boca
sinto-me em consonância com a seriedade das coisas
com as suas leis tácitas esculpidas nos relevos
nas brechas e nos jogos de brilho e sombra
o mundo pode ser de poucas fantasias enquanto
um instante puder ser mais profundo e diverso
que o mar segundo Borges
aceito a espuma de banalidade
sobre determinadas coisas leve e fina
algo de sol pulverizado folhas de lua
granulado de fosforecência na camada
fina de água gerando a poça na profundidade
rasa da dureza         mas quando a massa de banalidade pesa
de tal forma que me afunda
recordo que a vida é feita de carrossel
de reverso e anverso        e quando toca o sino na escola
corremos para o pátio
as lições que aprendemos não são
geradas pelas lousas escuras e inânimes
os aprendizados geram dos nós
da rede de relações de tudo com tudo
do chão com o tombo
do som com o assombro
das gotas de orvalho com o plástico de bolhas
dos insetos folífagos e as nervuras da chuva

da monotonía no miolo do trânsito do transporte dos momentos
e o tíquete usado de metrô
da gota vermelha de cabeça para baixo
no google maps preenchida com a letra do meu nome
demarcando o local do meu despertar dentro e fora de mim
quando naufrago e me desespero abro os braços


[PERCORRE NAS VEIAS]

percorre nas veias das paredes
a eletricidade iluminada
pagamos por cada segredo denunciado se fossem segredos…
mas são apenas as calçadas as fachadas das lojas
o interior das casas a televisão ligada
a luz elétrica ocupa a noite
e engole as estrelas a lua a madrugada azulada
como se o escuro fosse somente do diabo
tartáreo e deixasse de ser do silêncio
do mistério e do tateável onde os contornos se fundem
no titânio das pedras das montanhas
no marinho das sombras dos céus e dos mares
no fundo dos sonhos fragmentados
o escuro pode também iluminar
com o peso da quietude e do descanso e descaso
da fantasia que vem habitar a imaginação
gerando imagem e encenação
como se o escuro não fosse onde os desejos
eróticos se acendem espalham chama na cama
e se rendem aos sentidos dos olhos fechados
a luz superficial sufoca as estrelas diminui a lua
diluí o seu brilho platinado
o escuro também pode iluminar
com o palpável com o audível
com as suspeitas e suas nuanças de imaginado
no meio da ágata preta subterrânea no reverso da claridade


[A POESIA É MÃE]

a poesia é mãe
e amamenta os relógios
com os números da memória
amamenta as bocas famintas de lexema
as mãos secas que tateiam os laços
amamenta o uivo da noite as suas feras
e seus segredos a inerrância das luzes
que alimentam passagens e conheceres
amamenta os movimentos
o deslocar das impressões e da força
amamenta o peso das coisas acontecidas
amanhecidas e a leveza do esperado
amamenta as semanas das salas de aula
e os alunos com o braço erguido
amamenta as raízes das dúvidas
e as glândulas das respostas
amamenta o mar da convivência
o verde das folhas misturadas e o salto
dos anfíbios as teias da fragilidade mortífera
e a delicadeza assimétrica do trabalho
amamenta as saídas e os atalhos
amamenta o renascer das lutas
das armas feitas de expressões e símbolos
amamenta o adormecer dos peixes
amamenta a perda e o vazio e a dor
amamenta a busca o encontro os teus olhos
amamenta o secar do sangue da morte estúpida
a besta da morte na hora errada
amamenta o consolo o pulsar da resistência
do continuar amamenta os esqueletos
das lembranças o exaurir dos fantasmas que habitam
o quarto do medo amamenta o medo amamenta a gordura
da coragem e o seu ímpeto
amamenta os cavalos desembestados
nos vastos campos
amamenta o espraiar do amor
e sua substância fluida
amamenta as larvas do esquecimenro
o irreversível da gota caída
amamenta a partida e a partida
o que foi e o que se dividiu
amamenta as chegadas achegadas cheganças
amamenta o solo amamenta do existir o miolo
amamenta a arte a parte das linhas e imagens
das notas da água nas pautas da dança dos sentidos
da dramaturgia da realidade das vozes da ilusão
amamenta as construções
amamenta os filhos da imaginação
amamenta o que nasce dela
e o que a vida lhe coloca no colo
amamenta as paixões


[PARA AQUELES QUE CHEGAM]

para aqueles que chegam contentes ao emprego
embora automatizados e acorrentados no horário
do expediente diferenciam-se dos resignados
mal-humorados ganham salário mediano
que cobre as necessidades básicas e as férias
uma vez por ano mas talvez o contentamento não venha
do emprego esta forma de possibilitar a continuação
da vida contemporânea quando não mais é possível
sair para caçar procurar frutas silvestres nos arbustos
e dormir nas cavernas frias ou nas ocas no meio da selva
talvez não seja chegar satisfeito ao emprego
mas estar contente com mais um amanhecer do dia
e suas repetições que nos renovam e nos envelhecem
porque há dias aborrecidos
                                  outros limitam-nos
ainda mais quando agregam-se sem suscitar novidades
mas eis que de repente o sol resplandece
mais verdadeiro ou a neblina brilha argêntea
a sonoridade da manhã sob o tom de musicalidade
e as cenas urbanas nos arremetem ao cinemático
dos corpos em movimento no plano aberto das ruas
das construções dos congestionamentos
no plano médio das calçadas da entrada dos estabelecimentos
no plano fechado das desconhecidas faces
por nós passando atarefadas como se fossemos captados
pela sequência do dia sem cortes
de devaneio e dilemas frívolos e irrefutáveis
dias em que a longa-metragem do cotidiano nos adapta
em suas montagens          porque somos os protagonistas
                    das cenas despojadas

do espetacular     reproduzidas pela simplicidade
e pela repetição de momentos irretratáveis


JACURUTU

I
eu morava em uma árvore obesa de galhos alçados
folhas de sol e de chuva de onde eu caçava as rosas negras
assopradas pelo vento nas horas escuras da minha saudade
e transformava os papilhos soltos em uma manada
de ovelhas minúsculas pastando no campo da meia noite branca
eu ocultava-me durante o dia no interior do olho ciclope
na testa da árvore e alimentava-me de minhocas azuis
que de manhã entravam pelo buraco do céu
e traziam o som da avenida larga nas costas do bairro
e dos trastes de uma escavadeira como se fossem
os trovões antigos de um trem
de grandes rodas de aço e viagens às vezes eu vestia no pescoço
o mosaico do violão e saía cantando algumas notas
serenas na finura fosca e fresca dos fios elétricos
o mar que tu me tinhas era pouco e imóvel
as ondas presas no rastilho ficavam lá no lambril do horizonte
à noite eu despertava e procurava a tua morada
com os meus olhos redondos e grandes
de quem aprendeu a respeitar o aleatório
do número seis e a repetir o refrão das aldravas
nas portas do não com os meus olhos redondos e grandes
com as minhas orelhas proeminentes ampliando o volume da busca
encontrava-te escondendo nuanças debaixo
das escamas da madrugada que só brilhavam depois de caídas
e ressecadas pelos traços das letras escritas à mão

II
no cair do instante mais profundo com os meus pés nus
enroscados nos teus    eu sentia os caminhos que percorreste
o medo de não ser amado    o medo de amar demais 
na ponta do cálamo    para isso eu deitava-me ao teu lado
incubávamos o medo para que quebrasse a casca e voasse
eu esquecia-me dos camundongos roedores de treliças 
perambulando livres no terreno desenternecido 
alimentava-me de minhocas azuis e eles continuavam 
remexendo o desdizer e descontinuando
movendo a mais ínfima denúncia de desentendimento
deixando-nos perplexos de solidão 
e de distância lançada entre as nossas garras
eu só saía para beber a água da bica escrita nas rugas das pedras 
assim nos recuperávamos do não entendido 
e seguíamos com os pés descalços 
o mar que tu me tinhas era pouco e se secava
eu precisava refazê-lo gota por gota na margem dos teus gestos
eu torcia para que as formigas desviassem a via da claridade
e eu pudesse permanecer mais tempo entrelaçada no teu corpo
mas elas dormiam    torcia para que os morcegos desviassem a via
da claridade    mas eles só queriam se empanturrar 
com o vermelho das paixões secretas que também dormiam
torcia para que os camundongos desviassem a via da claridade
mas eles ruminavam outra semântica    talvez eu mesmo pudesse desviar 
o rumo da claridade  mas eu não conseguia me desfazer de teus pés nus 
e ignorar a súplica do sexo das flores
 
***** 
 
[APÓS ARAMAZD]
 
após aramazd tornar-se pai
no final do dia e início da noite
ele costuma se sentar na poltrona divina
o corpo lasso do trabalho      a cabeça pesada
                                                     de pensamentos
os filhos começaram a viver pelos quatro
cantos do terra      encheram o mundo
de transformações    alguns são desobedientes
ociosos ou revoltados      tudo exigem de aramazd
que resolva os problemas que criaram
que ajude a carregar o fado que adquiriram
que assuma a culpa que não assumiram
tudo exigem de aramazd
oram por ele     fazem promessas e rezam
passam a vida ajoelhados
ora se sentem amados     ora abandonados
e se esquecem de suas próprias aptidões
não se esforçam em aprender as suas próprias lições
e acreditam no rogar eterno
aramazd sentado na poltrona divina    
vive aureolado e preocupado   ora terno
ora redimido
por não conseguir deixar de ser
o pai todo poderoso na mente desses filhos
 
*****
 
[ERA TARDE QUANDO O RELÓGIO TOSSIU]
 
era tarde quando o relógio tossiu a hora perdida
e a morte do sol possuiu algo de vermelho mesclado a roxo
não houve o encontro e a espera trouxe um movimento impróprio
de final de tarde…    uma nesga de paixão amarrada na ponta
do céu     ou foi o espelho de um edifício
e em seu interior o teu semblante de terno e gravata estampado
na transparência do aquário vertical
um plâncton errante e livre
a liberdade pode também significar ermo
quando demais indefinida e solta
atada à dependência    ao contorno
de tudo existente    tudo vive de sua linha fronteiriça
onde o espaço alheio começa    e o celular toca
não es tu    não te reencontrei
e as calçadas movimentam o dia esbarrando em mim
os passantes circulam pra lá e pra cá rapidinhos
germinando coisas a cada oito horas
carregam sacolas de compras nas mãos    um aflorado de objetos
e tecidos coloridos lá dentro
nas calçadas as vozes aladas    bolhas débeis de sabão
irrompem incompletas    refletem frágeis imagens na cara da mesmice
na esquina a mãe segura a mão da criança
no momento da vigilância    no momento da posse
no instante do risco e de um semáforo vermelho
eu regresso lento ao interior de mim
passando pelo simulado silêncio das ruas
que surge no instante exato entre o claro e o escuro
—a contraverga da tarde e da noite
um silêncio tão inocente como culpado 
que se expande ligeiro
e se finda rápido
em mim preciso do teu esbarro e do toque do mundo à minha volta
guardo os fósseis das tuas palavras nos limbos
das minhas mãos
a cada despertar dos gestos revividos renovo a promessa
 
*****

 

[ONDE DEIXAR AS MORTES]

onde deixar as mortes que eu vivi?
as fissuras nos calcanhares ainda não se abriram
nada visível como as correntezas que nunca regressam
jamais se arrependem do ir e sempre seguem adiante
famintas deste existir na desembocadura
nas gavetas guardo os pregos e as chaves junto aos papéis
que me eximem do balançar na rede de espumas
não posso deixar em cima da penha na parede da montanha
como uma sagrada urna cheia do espectro das quedas
no fundo da caixa de ferramentas que destruíram a armadura
não no guarda-roupa misturadas com as roupas usadas e pequenas
as mortes que eu vivi têm gosto de ferro e frias
um escuro caroço no miolo do pão e um nó de fios azuis de sal
agora tecem as tramas das mornas brisas e servem
de filames são como a pantomima da morte maior
que virá algum dia onde deixar as mortes que eu vivi
foram lanhos tão lanhos no meu corpo tanto contorceram-me
e mudaram meu tamanho e amadureceram-me
onde deixar as mortes que eu vivi?
que já não armam mais os embustes agonizantes
agora como a descascada pele inútil do réptil
como os flancos desfeitos da minha imagem
nos eczemas dos momentos partidos
onde deixar as mortes que eu vivi?
deixarei em mim em mim assim como não se desfaz
de mim a pele que refaço

 

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