4 Poemas de Dusan Matic (Sérvia, 1898-1980)

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Apresentação e tradução de Nicolau Saião* (Portugal, 1946), poeta e artista plástico.

Dusan Matic nasceu em Cuprija, Sérvia em 1898. Estudou filosofia em Belgrado. Começou a escrever em 1923. Foi um dos fundadores do Círculo Surrealista de Belgrado, amigo íntimo de André Breton e Juan Miró, pertencia no sentido espiritual aos surrealistas franceses. Autor, entre outros dos livros Bagdala: poemas, Os dados estão lançados, Noite acordada, Segredos das chamas. A influência de Dusan Matic na poesia sérvia é notável. Seus poemas são dignos não só de maturidade intelectual, profundidade de pensamento e atitude dialética, mas também de outras qualidades: riqueza de imagens, metáforas inusitadas, eloquência arrebatada, expressão estilística precisa, espirituosa, associativa. Morreu em 12 de setembro de 1980 em Belgrado.


AMANHÃ NOVAMENTE

Eu sei o que me espera
Uma carga de terra escavada
Não, não importa, eu nem vou saber
Não vamos falar sobre isso.

Não é amanhã
Este não é o momento que inevitavelmente está a chegar
E cheio de velas e flores leves
Não é a eternidade que é mais rápida que o som e
Mais rápido do que uma estrela: um raio que de repente
Liga todas as lâminas de sangue.

Eu sei o que me espera
Não vamos falar sobre isso.

Não é amanhã
Amanhã é de novo e de novo e de novo
Amanhã é a maré que borbulha de novo
Amanhã o banco estará no parque novamente de qualquer maneira
Acima de um cemitério que ninguém suspeita
Sim, há relva sob o relvado
(A equipe de arqueólogos vai chegar tarde novamente
Só depois de amanhã)
Os nomes do nosso esquecimento foram apagados há muito tempo.

Eu sei o que me espera
Uma carga de terra descartada
Não, não importa, eu nem vou saber
Não é amanhã.
Amanha a casa é nova
A casa já esta velha
Escada suja
O fedor da sala
Uma casa com uma parede cinzenta-amarelada
Com uma parede cheia de palavrões e nomes.
Amanha a casa está velha
Com parede caiada
(Canção da manhã)
Com uma parede tão diferente que afinal a parede fica do outro lado da rua
Tanto que não é tão durável, afinal.

Amanhã é o sol e o desespero
Desespero e o sol.

Eu sei o que me espera
Cinzas a serem levadas pelo vento
Não é amanhã
Não é a hora que inevitavelmente está a chegar.
Amanhã é o mesmo sofrimento e palavras aleatórias
Nemo que fere
Amanhã é o mesmo mar que o mesmo
Ele repete
Amanhã é uma nova risada e uma nova alegria
Amanhã é vinho hoje

Amanhã o quarto é novo
Alguém está nele a chorar
Amanhã é o quarto dois
Nele, outra criança canta uma velha canção
Para entender de cor, aprende
Amanhã é o quarto três
No espelho acordado e cego
Sonhos de ombro nu
Amanhã é uma rua sem medo
Amanhã é um café com terraço tranquilo
Amanhã é um campo que não tem fim
Amanhã é um momento de frágil chegada.

Amanhã são pessoas que carregam um clima frágil
Amanhã eles estão mortos que supera os mortos amanhã.

Amanhã é desespero e o sol
Desespero e o sol.

Amanhã é um novo sofrimento e palavras acidentais
Eles alimentam-te
Amanhã é um novo mar que está a envelhecer
Repete ele.

Amanhã é a mesma risada
A mesma alegria.

Amanhã é vinho hoje

Eu sei o que me espera
Esquecendo de me absorver sem deixar vestígios
Não, não importa, eu nem vou saber
Não vamos falar sobre isso
Amanhã é a hora inevitável dessa frágil vinda
Amanhã, as pessoas estarão frágeis porque inevitavelmente carregam o tempo
Amanhã é esquecer o que transcende o esquecimento de amanhã.

O amanhã já está aqui entre nós hoje.


PARA NOMEAR AS SOMBRAS DAS ESTRELAS

Mais
Tu tens

Apenas
Palavras quebradas e mortais

Apenas
Carne frágil e mortal

Toda a vida para defender
Do lavrar da morte.

E um cadáver quando o seu
Eles enterram no deserto na areia
Vencedores de amanhã com olhos castos e alegres
E eu sou cruel. Sem sombra.

Sim, as estrelas são planaltos e
Na areia movediça da morte.

Nos espelhos violentos e permeados da morte.


ANTES DA TEMPESTADE

Deixa a noite ser o que tu queres que seja de novo
Eu não sei mais nada
Eu não entendo nada
Até a noite quando chega áspera e resinosa
Noite e noite e noite.

Um lugar de ouro e mal e bem e uma parede de desespero
O que não significa que eu bato com a cabeça a cada hora
Um êxtase sem personagem, uma razão sem choro
Pela longa noite que está a chegar
Olha e pareça ridículo e engraçado para sempre.

Exceto pelo sangue que flui entre a dor de todos e a dor de todos
Não há excedente para medir a sua profundidade.

Esqueçe a sua memória esqueçe o seu esquecimento
Como um viajante disperso, estarei numa estação desconhecida
Uma ponte ferida pelas feridas do mundo estende-se por entre essas ruínas
Sobre aquele horror e lama
Onde o hábito da luz é quebrado numa lágrima não redimida.

Lá na clareira daquele horror sem fundo para assistir e dormir
Frágil no sótão e sozinho
A insolência não me ajuda em nada.


O RIO VAI CORRENDO

Deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os vestir o que vestem
eu não estou aqui para vender bocejos para chorar
ilusões perdidas
sobre abismos abertos
Eu não sou uma pessoa que descreve todas
as tarefas de que eu gosto
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os carregar a lama
deixa a rosa da consciência descansar pacificamente sobre a mesa para esse
tempo
em cada cabelo cada estrela aparecerá tarde
enquanto os pés das crianças se derretem em campos tão largos como
a primeira neve
e a centopeia agarra as sombras caindo sobre a parede
e a relva cresce acima da tua testa
a relva do esquecimento ou a relva das memórias não importa
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os lavar o sangue
a relva do esquecimento ou a relva das memórias é tudo isso
que ainda resta
deixa os rios fluírem, deixa-os levar amor
deixa os rios sonharem até eu chegar ao fim
deixa-os fluir ao redor da estátua mais belos do que a carne do lilás
mais belos do que o tempero silencioso da lua podre
mais belos do que o sussurro silencioso de uma lua assustadora
deixa a tesoura da dor vaguear sobre aquelas clareiras
ao luar
luz da lua nua luz da lua estéril
é melhor eles vaguearem aqui onde a lua gelada aquece
do que nos quartos onde os amantes recém-adormecidos dormem
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem cheios
de luar
deixa a tesoura da dor e os arquivos da dor vaguearem
para atenuar as palavras afiadas e ásperas que surgem como
cargas dessas camas de fogo e de cabeça para baixo
no paraíso
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os vestir o que vestem
deixa-os sussurrar para os solitários ao longo das bordas
deixa as cidades andarem de mãos dadas
eles cortam a respiração e colocam o pé debaixo dela
e de tudo o que te importa
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os carregar a lama e a dor
quem és tu para levantar a mão atrás do braço da consciência sobre a mesa
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
quem és tu que gritas melancolicamente e ninguém dá a sua cabeça
que se virou
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os carregar ouro e dor
quem és tu para tecer armadilhas em torno de castelos
onde morrem os pombos
tu gentil e desconhecido
quem és tu para olhar tanto para a estátua
mais mortal do que o cheiro dos jacintos
todas as agulhas arrancadas da carne dolorida que não existe
e encontrou as suas esperanças na encruzilhada onde
de tarde o vento sopra e onde não há sinal
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
entra na primeira casa, vira à esquerda e segue ao longo do corredor
e abre bem ali
a primeira porta
deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem
de uma para a outra para a terceira e assim por diante na última
onde a janela está aberta tu encontrarás um gongo
ignora tudo o que puderes
escuta
nada
bate novamente no gongo com toda a força
ouvirás boas risadas que se te destinam
apenas não brinques na janela não brinques
nos bloqueios
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
e não olhes para trás
na janela, não brinques ao esconde-esconde
olha apenas: algo está sonhando ali
quanto dessa morte está escrita e cuja morte está nos cegos
olhos da estátua
não brinques ao esconde-esconde na beira da janela
uma tontura é tão fácil quanto o são as palavras
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem
o que é uma noite numa sala vazia ao lado de um gongo
em que tu bates incessantemente
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
para quem são todas as noites e ela a NOITE
que os abrange a todos
sem sombra sem maquilhagem na copa da manhã vai cantar
o PÁSSARO
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa-os carregar o amor
e o que é uma noite esperando as medidas
ainda mais uma vez a espera é
mais rápida do que o contar
deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
que eles levem os céus com eles, que eles levem os seus próprios
tabuleiros
ou seja, nós
tu simplesmente ouve o pássaro e ri desse vermelho e
ouve de repente
os risos dos lábios da estátua que eles perderam
para olhar antes de eles saírem da praça ao redor
da meia-noite
risadas boas e a ti destinadas
perdeu-se o significado caloroso e simples da palavra que irá
hoje para repetir mecanicamente
um significado caloroso que apenas as crianças terão na frente das vitrines
começando hoje antes de ir para a escola, sim
eles entendem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem
deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem
em cada cabelo cada estrela tarde aparecerá

e uma estrela tardia em cada palavra que aparece.


Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Cabral Martins (1950), organizou a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado.

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