Curadoria e tradução de Floriano Martins
Norma Flores Allende (São Salvador, El Salvador, 1989). Escritora salvadorenha de origem argentina e paraguaia. Reside em Assunção, Paraguai. Foi redatora convidada nas feiras de Montevidéu (2017), Buenos Aires (2019) e Córdoba (2021). Recebeu menção honrosa do Prêmio Municipal de Literatura da cidade de Assunção em 2016 com sua primeira obra Memorias del Planeta Extraño. Em 2021 recebeu o terceiro prêmio na convocatória Cuentos en Red 2021 do Centro Cultural Juan de Salazar España, no Paraguai. Em 2022 conquistou o segundo lugar no Concurso de Poesia Carmen Soler organizado em Assunção. Coordenadora no Paraguai do concurso regional Digital Story da Fundação Itaú (2020-2023). Foi jurada em concursos de contos e poesia em Assunção.
MUNDO-DENTRO-DO-MUNDO
Disseram-me para não cruzar a fronteira final, mas sempre quis ver o oceano. Eu sei que nunca o verei, vivo confinada na escuridão eterna. Meus olhos estiveram fechados para a luz por incontáveis eras, foi o preço da minha imortalidade: não ver a sucessão de seres que se revezavam no domínio dos solos. Mas… e os mares? Nós o tememos e suas criaturas ainda mais estranhas. Não tenho mais nada a perder. A vida eterna pesa sobre mim e quero livrar-me dela entregando-me ao seio do mundo, lá no fundo, submersa no esquecimento.
Esse bater isócrono das ondas e do vento, exclamação silenciosa de uma potência lenta que espera em um mistério de fins insondáveis, serão os cantos do cisne deste cego contra a natureza.
Sei que esta é minha última viagem e não escolhi as estrelas cujos brilhos ainda ressoam em mim. Escolhi um último pôr do sol balançando entre os azuis dos céus e a massa de água, azuis que nunca verei, mas nos quais deterei a minha imortalidade.
Quem diz que as ondas não são música, são a entonação do ventre da Terra e os segundos do relógio que marcam a sua vida. Eu escuto. Eu não os vejo. Ouço-os e, acima de mim, o grasnado de algum pássaro que se despede de mim. Meus pés descalços penetram na areia e caminho lentamente até onde nascem as águas. Avanço cada vez mais, envolve minha cintura. Quando poderei finalmente entrar em seu portal, mundo dentro do mundo? Mãe. O mar é o mar, ventre do retorno, origem do Todo e fim do Meu. Mãe. Leva-me. Eu não quero mais ser. Então me despedi de mim mesma com um último abraço.
A FRÁGIL PROFUNDIDADE DO SILÊNCIO
A frágil profundidade do silêncio
rompe o murmúrio que me deixaste.
Meu tormento é mais forte que o vazio,
porque esse despojo já não sou eu,
não serei mais aquele que deixará a terra escorrer.
Não vou mais te ouvir durante a noite.
Não vais mais abrir a minha carne,
nem arrancar as minhas vísceras.
Na nebulosa fria
serás lama muda,
os vermes darão à luz o amanhecer.
Somente o vento machucará meu epitáfio.
“Aqui nasce o que não querias.
Aqui morres com o teu esquecimento.”
NÃO VÊS QUE A NOITE ESCAPOU DE TI
Teu rifle respirava em silêncio; esqueceste de me dizer que estavas desenhando mapas em uma guerra. Milhares, milhares, dezenas de milhares, eu os vejo nas constelações que brilham quando é noite. Anos depois soube que teu deus doloroso pregava nas montanhas amarelas, as mesmas que escondem segredos. Por que esqueceste as flores do sonho, por que te esqueceste de mim. Não vês que a noite passou, não vês que era cedo e que mais tarde ainda terei que partir. Não há um só homem que contemple a minha morte, apenas o rugido do deserto, entre os troncos nus que até há pouco falavam, até que a tua marcha os esgotasse.
VEJO O VULCÃO QUE SEMPRE SE AFASTA
Andarilho entre as brumas,
esqueceste aquela areia
escorre?
Eu segurei a tua mão
e me soltaste.
Quando morreste,
voltei a nascer,
no mesmo lugar embutido na ausência.
Abandono.
Vejo o vulcão que sempre se afasta.
Lembro-me bem do que me forcei a esquecer.
Os nomes fervem em minhas entranhas,
existe aquele passado que também se afasta.
Como posso pertencer a algum lugar, andarilho?
Quando eu era menina, procurava um balanço,
ignorando tudo o que tiraste de mim.
Agora eu sei muito bem o que calas.
Não há memória em tua fuga,
me condenaste a viver
em um exílio.
MORREREI ENTRE AS ROCHAS
Morrerei entre as rochas,
em um som profundo
consumido pelo mar.
Serei a fúria oceânica,
a tempestade dos ventos.
Vou me mexer entre as margens
e ali serei a música
que se perdeu em minhas lágrimas.