Juan Gelman (Argentina, 1930-2014)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Os primeiros anos de exílio eu os passei em Roma e o idioma italiano me danava a orelha e, em consequência, a boca. O idioma italiano é muito doce, é muito suave, possui muitos despenhadeiros para encostar e descansar, possui muita liquidez. Em função de meu trabalho, sentia todo o santo tempo o italiano na orelha: e isto me danava. Porque a “carga” de minhas obsessões, do que eu queria expressar, tinha muito mais de fúria do que de descanso. Esta situação creio que é mais grave com a poesia do que com a prosa, porque é o povo quem cria o idioma e são suas impulsões que enriquecem os poetas que convivem com o povo. A linguagem cria a gente, mas certamente a gente também cria a linguagem. Eu me encontrei em outra linguagem, em outra cosmovisão e o que fiz para me salvar, para matar outros fantasmas, para me desinfluenciar, foi escrever uma série de sonetos em lunfardo romano. Eu não sei se essas coisas escritas conservam a mesma entonação. Em todo caso sei que estão intimamente ligadas a uma convicção, que estão intimamente ligadas a uma temática. Desgraçadamente está desvinculada de todas as impulsões atuais da linguagem que nosso povo cria todos os santos dias, porém eu penso que me fui portenho velho e há coisas que se leva, com o perdão da palavra, na alma e é muito difícil que te possam tirar. Na medida em que tudo isso foi válido em mim, permanece e, na medida em que não o foi, não permanece. Não se pode sentar a escrever poesia e isto diferencia a poesia de outras disciplinas literárias. Além do mais, na poesia não se escreve o que se quer, mas sim o que se pode. Vou exemplificar com dois casos extremos da pintura. O primeiro é o de Cézanne, que dedicava inumeráveis jornadas para pintar uma natureza morta ou uma parede, e o segundo é o caso de Van Gogh, que pintava vários quadros em um único dia. Van Gogh, como os japoneses, queria eliminar a mão entre o cérebro e a cor. Eu me identifico com isto, também desejaria eliminar a mão que escreve entre o cérebro e o papel, e cérebro significa aqui a sensibilidade mental como globalidade: sensação, pensamentos, etc. O inconsciente grita muito e é para mim a maneira que possui a poesia de simultaneamente expressar a realidade, de explorá-la e questioná-la, e ao mesmo tempo criar outra. E desde este momento intervêm as formas pessoais. Algumas pessoas que leram meus livros escritos desde que estou fora me questionaram a tendência a verbalizar substantivos, fazer masculinos de femininos e vice-versa, etc., etc. Porém isto já se passava comigo na Argentina: minha relação com a linguagem foi sempre conflitante. Porque, por um lado, existe na linguagem uma riquíssima carga afetiva que vem sendo transmitida tradicionalmente ao longo do tempo e, por outro lado, está o problema dos limites que uma coisa conformada impõe. Este é um tema de reflexão linguística muito complexo. Lendo os textos que eram escritos na Espanha em séculos passados vemos que nesses momentos o idioma espanhol podia ter várias direções. Estou pensando nas cartas de Cortês, de Colombo, que deixam entrever os diferentes caminhos que existiram na linguagem espanhola do século XVI, e como coexistiram durante décadas, e como foi se conformando, do ponto de vista ideológico-sensível, até chegar a uma espécie de “congelamento”. Este congelamento, do qual não podemos culpar totalmente o franquismo, mesmo que o tenha imposto um terrível selo de quase meio século, começou já no século XIX (com algumas exceções, como é o caso de Becker). Porém antes, quando o idioma na Espanha estava em estado nascente, produziu textos extraordinários como os de San Juan de la Cruz, como os de Santa Teresa ou, para sermos mais laicos, como os de Góngora e os de Quevedo, que demonstram uma riqueza e uma variedade extraordinária. Na América Latina, que é, como dizia Martí, um continente mestiço, também estamos hoje nesse “estado de graça” de um idioma nascente: pela contribuição indígena, sobretudo na América Central e nos países do Pacífico Sul, pela contribuição negra, no Brasil e no Caribe, pela contribuição europeia, um pouco em várias partes e sobretudo na Argentina. Somos países jovens, em movimento, com ondas de grandes lutas populares que percorrem o continente. E toda a América Latina e o Caribe, em conjunto, são uma grande onda onde fervem muitas coisas e, entre elas, o idioma. E em meu caso particular, como no de muitos criadores, mais do que aventura pessoal, em tudo isto há uma aventura de muita gente…

JUAN GELMAN
“Penurias en el exílio y locuras en el país”, entrevista concedida a Oscar Paoloni. Revista Kosmos # 16. Buenos Aires, 1983.


NOTA XXII

ossos que fogo a tanto amor deram
exilados do sul sem casa ou número
agora dessonham tanto sonho roto
uma fadiga lhes distrai a alma

pela dor passeiam como crianças
sob a chuva alheia / uma mulher
fala em voz baixa com seus pedacinhos
como se lhe cunhassem não ser / ou nunca

se foram do país ou pátria ou puma
que percorria a cabeça como
sorte infeliz / país da memória

onde nasci / morri / tive substância /
ossinhos que juntei para acender /
terra que me enterrava para sempre


COMENTÁRIO IV (santa teresa)

e havendo muitos passarinhos e assovios na /
parte superior do pensamento ou cabeça / e ruídos
na cabeça como um mar / ou lamentos /
ou ventos ou movimentos / sóis

que se chocam entre si / se apagam / ardem / ou potências
como milhares de bestas que pisam
o subúrbio da alma / ou seja padecendo
os trabalhos terríveis / ainda assim

ocorre a alma inteira em sua quietude /
ou desejo / ou claridade não tocada
por pena / menosprezo / miséria /
sofrimento ou ruindade / então

que é esta paz sem vingança? / ou memória
de céu por vir / ou ternura
que desce de tuas mãos / manancial
onde os passarinhos do alto do pensamento

vão beber / piam doces / ou calam
como luz que viesse de ti / asinha
que voa suave sobre guerra e fadiga
como voo da mesma paixão?


COMENTÁRIO XXXVII

desnudo o velho homem vai
a teu subido amor o dia
em que sairás a vistas e falas /
pequenita de peitos não

crescidos como desamparos
mas sim como alvas / como tábuas
de cedro onde o alto amor
defende a esposa como

muro de paz ou relvas onde
teu lábio é sim como dois peitos
ou portas onde entras para mim
como perfeita / como luz /

como calor onde crepitam
minhas mãos que o outono já
deixa cair como folhas cheias
de lua clara como vozes

puras que voam / passarinhos
desses pesares / dessas penas /
que me pisas como verdade
desordenando meus furores


ENCONTRO VII (santa teresa)

com humildade andando / procurando
todo saber de tua luz suavíssima /
disseminada almíssima tua
que dá a vida em morte / caminhasse

meu coração ao redor da
criatura que molha tua criatura
como alma dada a amar / estes quereres /
estes descansos onde ardo como

chão de vós onde pouses um
infinito ou momento / mundo de
tua mão quieta em mim / calor / notícia

de tuas doçuras / de tuas companhias /
como encerrar-me em teu segredo sem
sair de tua senhora nunca / não


ENCONTRO XLV (santa teresa)

memória de meu ser? / humilde de um? /
dias sem descanso? / noites de trabalho? /
ir-se à morte? / mesmo que se saiba / porque
se sabe? / medo que ficaste atrás? /

olhos que ponho em vós? / palavras abertas
de nada servem? / ferro que marcas
meu coração como erra da alma? /
amor que grande em um solzinho não

pode estar? / viaja / cose a dor
ao amor? / alfaiate sentado aos pés /
sem maninha que o ajude? / triste? /
vida que criou / maltratando-a muito /

queimando amor contra a sombra? / dura
vida que pega como encerramentos? /
acima / abaixo / nas costas / tu? /
jardins deleitosos? / fontes? / tu? /

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!