Leopoldo Lugones (Argentina, 1874-1938)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A linguagem é um conjunto de imagens, comportando, se a olhamos bem, uma metáfora cada vocábulo; de maneira que encontrar imagens novas e belas, expressando-as com claridade de concisão, é enriquecer o idioma, renovando-o ao mesmo tempo. Os encarregados desta obra, tão honorável, pelo menos, quanto a de refinar os ganhos ou administrar a renda pública, posto que se trata de uma função social, são os poetas. O idioma é um bem social, e até mesmo o elemento mais sólido das nacionalidades.

O lugar comum é mau, uma vez que acaba perdendo, por excesso de uso, toda a significação expressiva; e a originalidade remedia este inconveniente, pensando conceitos novos que requerem novas expressões. Assim, o verso cunha a expressão útil por ser a mais concisa e clara, renovando-a nas mesmas condições quando depura um lugar comum.

Além do mais, o verso é uma das belas artes, e já se sabe que o cultivo destas civiliza os povos. A gente prática conta com esta verdade entre suas noções fundamentais.

Quando uma pessoa que se tem por culta diz não perceber o encanto do verso, revela uma relativa incultura, sem prejudicar, contudo, o verso. Homero, Dante, Hugo, serão sempre maiores que essa pessoa, simplesmente por terem feito versos; e é seguro que ela desejaria encontrar-se em seu lugar.

Desdenhar o verso é como desprezar a pintura ou a música. Um fenômeno característico de incultura.

LEOPOLDO LUGONES
Trecho do prólogo de Lunario sentimental (Buenos Aires, 1909).


Como o de Quevedo, como o de Joyce, como o de Claudel, o gênio de Leopoldo Lugones é fundamentalmente verbal. Não há uma página de seu numeroso que não possa ser lida em voz alta, e que não tenha sido escrita em voz alta. Períodos que em outros escritores resultariam ostentosos e artificiais, nele correspondem à plenitude e às amplas evoluções de sua entonação natural.

Para Lugones, o exercício literário foi sempre a honesta e aplicada execução de uma tarefa precisa, o rigoroso cumprimento de um dever que excluía os adjetivos triviais, as imagens previsíveis e a construção casual. As vantagens dessa conduta são evidentes; seu perigo é que a sistemática rejeição de lugares comuns conduz a meras irregularidades que podem ser obscuras ou ineficazes. Lugones teve a vaidade de trabalhar detidamente sua obra, linha por linha; um resultado desta dedicação é o elevado número de páginas de índole antológica.

Desdenhoso do espanhol, o autor de La guerra gaucha, paradoxalmente, adoeceu das superstições bem espanholas: a crença de que o escritor deve usar todas as palavras do dicionário, a crença de que em cada palavra o significado é o essencial e em nada importam sua conotação e seu ambiente. Contudo, em alguns poemas de tom nativo, empregou com delicadeza um vocabulário simples; isto prova sua sensibilidade e nos permite supor que suas ocasionais fealdades eram audácias e respondiam à ambição de medir-se com todas as palavras. Fatalmente muitas daquelas novidades tornaram-se antiquadas, porém a obra, em conjunto, é uma das maiores aventuras do idioma espanhol. O século XVII quis inovar, regressando ao latim; Lugones quis incorporar a seu idioma os ritmos, as metáforas, as liberdades que o romantismo e o simbolismo haviam dado ao francês.

[…]
Alcançar em um meio indiferente uma obra tão fértil e tão plena é uma empresa heroica; sua vida inteira foi uma laboriosa jornada, que desdenhou as recompensas, os aplausos e as honras e até mesmo a glória que agora o sustenta e justifica. Seu destino lhe impôs a solidão, porque não havia outros como ele, e nessa solidão o encontrou a morte.

JORGE LUIS BORGES
Trecho do prólogo a El payador y Antología de poesía y prosa (Caracas: Biblioteca Ayacucho,1979).


A ÚLTIMA CARETA

A miséria ri. Com sórdida costeleta
seu cão de guarda lhe presenteia um festim.
Em suas funambulescas calças vai um poeta,
e em seu casaco o órfão que tem por Delfim.

A fome é seu pandeiro, a lua sua moeda
e o tango vagabundo seu pai-nosso. Crina
de leão, sua coroa. Sua inutilizada escopeta
de mercenário impávido sua uma porosa fuligem.

Vai em dominó de farrapos, zumbe sua copla irônica,
por véu lhe empresta seu lenço a Verônica.
Seu corpo, de tão chagado, parece um horto em flor.

E sob a ignomínia de tão sinistra máscara
Cristo ensina à noite sua formidável máscara
de cabelos terríveis, de sangue e pavor.


A ESTRELA DA DOR

Na solidão tenebrosa
Como uma ribeira do nada,
A funda tristeza da estrela bela
Que cruza com o meu o seu olhar
É o mal de saber que estás em outra parte,
Em uma pureza vizinha da morte,
E o distante que estou para querer-te,
E o ínfimo que sou para alcançar-te.

O astro agrava no céu severo
A noturna desolação
Que passa por meu coração
Como uma água dissimulada por um furo.
Pequeno, frio e distante
Sol da meia-noite,
Tua tristeza é a dolorosa reprimenda
Dos mundos eternos ao despótico arcano.
Olhando-me detidamente
Com seu lúgubre esplendor,
Me revelas que a dor
É a memória do infinito.

Ah, por isto tens tanto dela,
Melancólica estrela.
Por isto, sem sombra nem ruído,
brilha em seu amor a luz fatal
Da mesma pena imortal,
Da nobre dor que nega o esquecimento.


A BRANCA SOLIDÃO

Sob a calma do sonho,
Calma lunar de luminosa seda,
A noite,
Como se fosse
O brando corpo do silêncio,
Docemente na imensidão se encosta.
E desata
Sua cabeleira
Em prodigiosa folhagem
De alamedas.

Nada vive a não ser o olho
Do relógio na torre tétrica,
Aprofundando inutilmente o infinito
Como um buraco aberto na areia.
O infinito,
Girado pelas rodas
Dos relógios,
Como um carro que nunca chega.

A lua cava um branco abismo
De quietude, em cuja concavidade
As coisas são cadáveres
E as sombras vivem como ideias.
E nos assoma a proximidade
Da morte naquela brancura,
Do belo que é o mundo
Possuído pela antiguidade da lua cheia,
E a ânsia tristíssima de ser amado
No coração doloroso treme.

Há uma cidade no ar,
Uma cidade quase invisível suspensa,
Cujos vagos perfis
Sobre a clara noite transparentam,
Como os riscos da água em uma folha de papel,
Sua cristalização poliédrica.
Uma cidade tão distante,
Que angustia com sua absurda presença.

É uma cidade ou um barco
Em que fôssemos abandonando a terra,
Calados e felizes
E com tal pureza,
Que somente nossas almas
Na brancura plenilunar vivessem?

E de imediato cruza um vago
Estremecimento pela luz serena.
As linhas se desvanecem,
A imensidão se torna branca pedra.

E permanece apenas na noite infausta
A certeza de tua ausência.


ENIGMA DO ERRANTE BARDO

Farto de andar em penas
Osolón de Ploguel,
abandonou sua torra,
seu atril e seu arrabil,

mudou de terra e nome,
e à força de bom fidalgo,
deu-se a correr os reinos
do persa e do mongol,
sob o nobre anagrama
de Ugopoleón del Sol.

Um dia entre os dias
retornou aos pátrios lares,
farto de façanhas novas
e de novos cantares.

Nada havia mudado;
mas, com memória infiel,
já ninguém se lembrava
de Osolón de Ploguel.

Do outro que era ele mesmo
muito menos se sabia,
se diz que na torre mora
Dama Melancolia.

Para conhecê-la sobe
pela escada usada,
e no salão de outrora
vê uma jovem delgada,

que com a mão posta
sobre o facistol
folheava o romanceiro
de Ugopoleón del Sol.


O NINHO AUSENTE

Só restou no ramo
um pouco de palha murcha,
e no arvoredo a angústia
de um pássaro fiel que chama.

Céu acima e trilha abaixo,
não acha trégua sua dor,
e vai parando em cada galho
perguntando por seu amor.

Já tem bem alto seu voo
e pia pelo caminho,
onde deixa no espinho
sua branda lã a ovelha.

Pobre pássaro afligido
que só sabe cantar,
e cantando chora o ninho
que jamais encontrará.

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