Olga Orozco (Argentina, 1920-1999)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Suponho que a realidade que mencionas é esta – imediata, limitada e densa – à qual podemos ascender com os sentidos e que talvez seja um reflexo, como o da caverna platônica. E não é que a desdenhe. Eu a amo, me seduz e me arrebata; lhe tenho o mesmo apego irrenunciável que ao meu próprio corpo. Porém suspeito que me impede “Ver”, que é bastante impermeável, que representa, além da contingência, a ruptura, o acidente, a fragmentação, o esmigalhar da eternidade no tempo. É a parede que separa o que esteve unido. E isso é também em minha poesia: um muro contra o qual golpeio permanentemente, tratando de transcendê-lo, de descobrir alguma porta, alguma fissura que me permita espreitar o outro lado.

[…]
Pertenço a um continente que me deslumbra e que pretendo que me acompanhe onde quer que eu vá. O demais, mais do que uma pretensão, é uma espécie de sede. Tenho o sentimento e a nostalgia da unidade perdida, quer se chame paraíso, Idade de Ouro, o Um Absoluto. Creio que desde ali o verbo teria continuado transcendendo, através da palavra, até a criação objetiva. Todos os mitos indicam que se cria nomeando, que há uma espécie de progenitura da palavra unida à criação, como se palavra e coisa constituíssem uma identidade. Quando escrevo um poema, crio com imagens verbais suscitadas por essas mesmas coisas, produzindo encadeamentos que me remetem cada vez mais longe, como se estivesse remontando-me até à primeira palavra e à unidade primordial. Naturalmente não chego jamais às sílabas que poderiam se converter no verbo sagrado, no qual estaria então ao princípio e ao fim da criação. Creio que era nesse sentido que Valéry escreveu a respeito de Mallarmé: “Se podia dizer que ele situava o verbo não no começo, mas sim no fim, detrás de toda coisa”.

[…]
Não creio que nenhuma maldição esteja fatalmente consubstanciada com a natureza dos poetas. Porém, a partir do momento em que Platão selou nossa expulsão de sua República, ficou decretada nossa proscrição. Mesmo que não tergiversemos o caráter dos deuses nem façamos torpes imitações de seus atos, mesmo que ninguém nos exija elogiar os homens esclarecidos nem ser exemplos de virtudes edificantes, os poetas, salvo bem-contados reconhecimentos, seguimos enfrentando as ardilezas, o desdém e o estupor. São as reações habituais que provoca um personagem ensimesmado e extravagante, que balbucia a sós, que joga seu destino em visões ilusórias e que habita um tablado suspenso entre abismos. Pareceria que se cumpre, através da exclusão, uma espécie de internação para fora, de jaula ao revés, já que a sociedade rejeita o que é para ela o Exterior, o que cumpre uma experiência extrema, no dizer de Michel Foucault – loucos, leprosos, miseráveis, licenciosos, profanadores, heréticos, irregulares –, o que ultrapassa as fronteiras admitidas para a carne, para a saúde, para a razão, para as paixões. Também nossa categoria entra nas desordens da transgressão e da desmesura e é passível de punição. Os castigos que a sociedade inflige ao poeta por sua falta de adaptação a valores e regulamentos que não são os seus, são paralelos aos que o poeta inflige a si mesmo por essa mesma inadaptação, e que compreende uma intolerável gama de angústias, penúrias, dilaceramentos e infernos, até chegar, às vezes, à autodestruição.

OLGA OROZCO
“Entrevista a Olga Orozco”, concedida a Gonzalo Márquez Cristo. Revista Común Presencia # 3-4. Bogotá, 1990.


Sua linguagem não é somente literatura, feito textual, textura verbal, como vem sucedendo com a poesia experimental de nossos dias. Sua linguagem redescobre antigas virtudes do verbo, religa a palavra como o sagrado, como já disse, atua como intermediária entre o imediato e o imponderável, nutre-se da verdade existencial e dos descobrimentos do espírito. É, por isto, ritual, mágica, encantatória. Sua linguagem não é ato intelectual, crítica ou reflexão sobre si mesma, interrogação sobre sua validade e condição, mas sim canto, ação, um meio mágico que recebe forças, fala através de ditados, transmite poderes, se enche de reverência ante o pensamento e o sentimento de Deus. Linguagem possuída por um daimon, em parte modelada pelo acaso, regida pelo destino. Mediante sua linguagem, vive.

JUAN LISCANO
“Olga Orozco y sus juegos peligrosos”, ensaio incluído em Descripciones (Caracas: Ediciones de la Flor/Monte Avila Editores, 1983).


REPETIÇÃO DO SONHO

Como uma criatura alucinada
a quem já somente guiasse a incessante rotação da lua por entre as dunas,
ou como um feixe de borboletas amarelas submersas pelo farol das tormentas
na vertigem do medo e da escuridão,
ou talvez ainda mais como a afogada que desce até o fundo do tanque
girando com um lento redemoinho de adeus,
assim vou convocada, sem remédio,
até alcançar minha sombra de estrangeira na névoa,
até cruzar os muros que levam passo a passo à condenação,
até entrar na noite em que o malfeitor assume as aparências do sonho
para melhor ferir sem nenhum desafio.

Esse é meu além após a única porta que se abre a cada dia para a mesma jaula
onde o costume grasna sobre seus alimentos de naufrágio.

Ele me espera vestido de veludo negro,
envolto pelo doce pesar da dor que não chega jamais,
e seu rosto vazio, fundindo-se na neve dourada de outro tempo,
exala uma luz morta,
um fulgor como que de velhas lágrimas guardadas para a acusação.
Aproximo-me através dessas relampejantes miragens de ontem que me anunciam uma vez mais meu próprio sacrifício,
porém devo chegar
igual a uma personagem prometida pelas marés do passado para um dia qualquer,
à hora azul pálido das imolações,
até um lugar que agora é o do sonho que se perde comigo e ninguém sabe.
Porque ele separa agora a envoltura do mundo com este único golpe de adaga
e abre de par em par os grandes céus das transformações.

Contudo, esta ferida do coração por onde saio,
estes degraus sem fim por onde giro com a velocidade da distância,
estas águas que giram e de súbito se aquietam para cristalizarem-se em uma sombra igual a meu destino,
novamente conduzem-me ao cárcere de espelhos que lança cada noite à noite em que morro.
Mesmo que ao despertar nada me diga que eu seja eu mesma.


ENTRE CÃO E LOBO

Enclausuram-me em mim.
Dividem-me em dois.
Engendram-me cada dia na paciência
e em um negro organismo que ruge como o mar.
Recortam-me depois com as tesouras do pesadelo
e caio neste mundo com meio sangue voltado para cada lado:
uma cara lavrada desde o fundo pelas presas da fúria solitária,
e outra que se dissolve por entre a névoa das grandes manadas.
Não consigo saber quem é o amo aqui.
Sob minha pele mudo de cão a lobo.
Decreto a peste e atravesso com meus costados em chamas as planícies do porvir e do passado;
ponho-me a roer os ossinhos de tantos sonhos mortos entre celestes pastos.
Meu reino está em minha sombra e vai comigo onde quer que eu vá,
ou inclina-se em ruínas com as portas abertas à invasão do inimigo.
A cada noite dilacero a dentadas todo laço em volta do coração,
e cada amanhecer me encontra com minha jaula de obediência no lombo.
Se devoro meu deus uso seu rosto debaixo de minha máscara,
e no entanto só bebo no bebedouro dos homens um aveludado veneno de piedade que raspa as entranhas.
Lavrei o torneio nas duas tramas da tapeçaria:
ganhei meu cetro de besta na intempérie,
e também outorguei estandartes de mansidão por troféu.
Porém quem vence em mim?
Quem defende meu bastão solitário no deserto, a savana do sonho?
E quem rói meus lábios, lentamente e às escuras, desde meus próprios dentes?


MENOS AINDA QUE RELÍQUIAS

São apenas duas pedras.
Nada mais que duas pedras sem inscrição alguma,
recolhidas um dia para serem somente pedras no altar da memória.
Menos ainda que relíquias, que testemunhas inermes até o juízo final.
Chegaram a mim, das duas vertentes de minha genealogia,
mais remotas que capas aderidas às cegas à abstinência e ao torpor.
E de repente certo matiz intencionado,
certo recolhimento suspeito entre as tensas bordas a ponto de estalarem,
o suspenso que vibra em uma estria demasiado insidiosa,
demasiado evidente,
me anunciam que começam a oficiar desde os anfiteatros dos mortos.

A que aludem agora estas duas pedras fatais, milenares,
com seus brilhos cruzados como o sangue que desliza por minhas veias?
A fábulas e a histórias, a estirpes e a regiões
entretecidas em um só encaixe, das duas costas do destino
até à trama de meus ossos.

Exalam outra vez esse tempo ciclópico em que os deuses eram meus antepassados
– malfeitores solenes, ocultos na onda, no vulcão e nas estrelas,
desceram à ilha a transplantar seus templos, suas represálias, seus infernos –
e também esses séculos das terras eriçadas, emboscadas no olho do zorro,
famintas no bocejo do jaguar, imensas na mudança de pele da serpente.
Passam heróis de sandálias ao vento e monstros confabulados com a rocha,
povos que traficaram com o sol e povos que foram somente dinastias de eclipses,
invasões tenazes como como trilhas de formigas sobre um mapa de coagulado mel;
e aqui passam as nuvens com seu ilegível código, excursões selvagens,
e o bruxo da tribo domesticando os grandes espíritos como um encantador de pássaros
para que falem pelo rufo da chuva, pelo fogo ou a semente,
pela boca amontoada da humilde vasilha.
Em um filete de névoas se inscreve a metade confusa de minha espécie,
enquanto mudam de vestimentas as cidades o sobem as montanhas ou se lançam ao mar,
seus belos rostos voltados para o último rei, para o último êxodo.
Um cortejo de sombras vem do outro extremo de minha herança,
chega com o conquistador e funda as colônias do ódio, da espada e da cobiça,
para expropriar o ar, os veados, os matagais e as almas.
Aproxima-se uma aldeia encalhada no alto do abismo igual a uma arca estragada,
uma coroa agreste que abandonou o normando e recolheram os ventos e as cabras,
muito antes que o avô conhecesse o riso e as beberagens para expulsar os males
e a avó, tão alta, enlutasse seu coração com despedidas e desgastasse os rosários.
Agora se ilumina um casario ao redor do arbusto, o cego e o milagroso santo;
é poeira e fumaça por detrás dos calcanhares da invasão, dos cães extraídos do diabo,
pouco antes que o avô disfarçasse de fantasmas as vinhas, os mirantes, os currais,
e a avó se internasse por bosques enfeitiçados a perseguir a ave das sete cores
para bordar com plumas a flor que não se fecha.
E ali vem meu pai, com o oceano recuando às suas costas.
E ali vem minha mãe flutuando com cavalos e voadora.
Estou em uma jaula onde o mundo começa em um gemido e continua na ignorância.

Porém atrás de mim não resta ninguém para seguir fiando a trama de minha raça.
Estas pedras o sabem, fechadas como punhos obstinados.
Estas pedras aludem a nada mais que uns ossos cada vez mais brancos.
Anunciam somente o final de uma crônica,
apenas uma lápide.


O PRESSÁGIO

Estava escrito em sombras.
Foi traçado com fumaça em meio a duas asas de cores,
quase uma incrustação de rigoroso luto cortando em dois o brilho da festa.
O anunciara muitas vezes o queixume congelado do cristal sob teus pés.
Disseram-no obscuros personagens girando sempre às tontas,
porque nunca há saída para ninguém nos albergues vertiginosos dos sonhos.
Propagara a relva que foi uma áspera, tenebrosa plumagem uma manhã.
Confirmaram-no dia após dia as súbitas fissuras nos muros,
os traços de carvão sobre a pedra, as aranhas translúcidas, os ventos.
E de repente transbordou a noite,
ultrapassou na medida do perigo as vitrines fechadas, os laços ajustados,
as mãos que a duras penas continham a pressão tormentosa.
Um grande pássaro negro caiu sobre teu prato.
É como a envoltura de algum fogo sombrio, taciturno, sufocado,
que veio de longe furando ao passar a intacta proteção de cada dia.
Agora observas fumegar essa colheita arrepiante.
Chega das mais remotas plantações de teu pressentimento e de teu medo,
chega incessantemente exalando o mistério.
Está sobre teu prato e não há distância alguma que te afaste,
ou esconderijo possível.


NO FINAL ERA O VERBO

Como se fossem sombras de sombras que se afastam as palavras,
labaredas errantes exaladas pela boca do vento,
assim dispersam-se em mim, perdem-se de vistas contra as portas do silêncio.
São menos que as últimas manchas de uma cor, que um suspiro na relva:
fantasmas que nem sequer se assemelham ao reflexo que foram.
Então não haverá nada que se mantenha em seu lugar,
nada que se confunda com seu nome, da pele até os ossos?
E o que me cobiçava nas palavras como nas dobras da revelação
ou que fundava mundos de visões sem fundo para substituir os jardins do Éden sobre as pedras do vocábulo.
E acaso não tentei pronunciar ao contrário todos os alfabetos da morte?
Não era esse teu triunfo nas trevas, poesia?
Cada palavra à imagem de outra luz, à semelhança de outro abismo,
cada uma com seu cortejo de constelações, com seu ninho de víboras,
porém disposta a tecer e destecer, desde seu próprio dorso, o universo
e a prescindir de mim até o último nó.
Extensões sem limites dobradas sob o signo de uma asa,
tramas como farrapos para deixar passar o sopro alucinante dos deuses,
reversos de onde o mistério se desnuda,
onde lança um a um os sucessivos véus, os sucessivos nomes,
sem alcançar jamais o coração fechado da rosa.
Eu velava incrustada no ardente gelo, na fogueira cristalizada,
traduzindo relâmpagos, desenfiando dinastias de vozes,
sob um código tão indecifrável como o das estrelas ou o das formigas.
Olhava as palavras contra a luz.
Via desfilar suas obscuras descendências até o final do verbo.
Queria descobrir Deus por transparência.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!