Josefina Plá (Paraguai, 1909-1999)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Nessa obra legada por Plá, a poesia ocupa o lugar privilegiado de sua criação estética, a face íntima de uma reflexão existencial que a crítica paraguaia (Roa Bastos, Francisco Pérez-Maricevich, entre outros) concorda em qualificar como devastadoramente elegíaca, monotemática e monocorde (Maricevich), monotonal (Roa Bastos). E o adjetivo devastador volta na obra do crítico uruguaio Ramón Bordoli Dolci. Efetivamente, Plá, protagonista de uma vida de atividade incansável, de um trabalho intelectual fáustico, entusiasta, multifacético, construiu uma obra poética que quase não ultrapassa uma centena e meia de poemas, e que se destina, uma e outra vez, a dizer uma única coisa: a dor de estar vivo, a tragédia de ser. Devastadora, certamente arrebatadora, essa poesia estremece sempre, com esse único tema surdo, repetido como sinos fúnebres. O abismo que se cria assim entre a lírica e a obra inesgotável da Plá intelectual configura um mistério que sua narrativa e seu teatro também não conseguem explicar. E aquelas plaquettes cuidadíssimas, cujas capas eram litografias especialmente realizadas, que continham às vezes dez ou quinze poemas, poderiam ferir o leitor se não contivessem a estética justa, a mestria do ourives que trabalhou o barro e as palavras. Um possível trâmite de leitura poderia colocar no centro da poesia de Plá o poema VI de O pó enamorado, a excelente plaquette de 1968. Esse poema, que aliás comparece entre parênteses, se inicia com estes versos: Mas te são porventura consultados teus desejos? / Alguém escreve com letras de piedade teu memorial de súplicas? A resposta é um Não definitivo, e essa negação, além de conter em si toda a lírica de Plá, coloca mais uma vez o enigma da arte como transfiguração da dor em beleza. E é por isso que ler essa obra é uma experiência limite: porque o leitor intui que qualquer caída na prosa converteria o texto num diário íntimo da angústia.


Por outro lado, esta obra breve, e autônoma frente à escritura narrativa (ficcional ou não) de Plá, que, essa sim, ocupa vários tomos, apresenta-se como uma profunda, procurada unidade. Obviamente, desde O preço dos sonhos, de 1934, até Os trinta mil ausentes, de 1985, podem-se detectar etapas, variações diversas de um tema e uma estética. Para começar, e com exceção de um texto impresso em 1949 (Rapsódia de Eurídice e Orfeu), à primeira publicação seguiram-se 26 anos de silêncio editorial: a segunda plaquette, A raiz e a aurora, só aparecerá em 1960. Bordoli Dolci invoca dois motivos para explicar esse silêncio, a saber, o fecundo trabalho da autora em outros campos, durante esse período, e as dificuldades financeiras. Podem-se aceitar esses argumentos, mas continuam parecendo insuficientes. Em 1977 Plá publicou uma Antologia poética (1927-1977) e incluiu nela só três poemas de seu primeiro livro. Quando em 1989 Bordoli Dolci publica seu primeiro trabalho crítico sobre a poeta (Poesía paraguaya. Josefina Plá, Casa del Estudiante, Montevideo), que inclui também uma seleção de sua poesia, admite que O preço… é inencontrável; eu trabalho com uma seleção abundante de poemas enviados pela Sra. Plá. Isto é, a poeta exerceu então outra seleção daqueles textos (ainda que abundante). São muitas as pistas que apontam a outra conclusão. A autora era consciente de que sua estética só estava realmente criada a partir dos anos ‘60, essa década riquíssima na sua obra, que inclui, além de A raiz e a aurora, as plaquettes Rostos na água, 1963, Invenção da morte, 1965, Satélites obscuros, 1966, O pó enamorado e Desnudo dia, ambas de 1968. Ela exerceu assim o direito de reler seu livro de juventude em nome, já não de um princípio abstrato de qualidade, mas da unidade da obra.


Costuma-se afirmar que O preço… marcou um antes e um depois na lírica paraguaia, que era até então tributária de uma manière modernista, incapaz de renovar seu idioma. É uma verdade, sem dúvida, como também é uma verdade que aquela linguagem nova, com seu reiterado florescer, tem muitos pontos de contato com a obra da uruguaia Juana de Ibarbourou, que fez escola desde os anos ‘20. (Aliás, Plá consagrou um ensaio a Ibarbourou e manteve com ela relações cordiais). Na poesia que fica daquele primeiro livro (para a estética da poeta, não para a crítica paraguaia como referência) comparecem tópicos que serão centrais no conjunto da sua obra, como o tema do tempo, em versos à la Ibarbourou, cuja forma, porém, ainda ingênua, está muito longe da futura, definitiva Plá.

ALFREDO FRESSIA
“Escrito com luz negra. A poesia de Josefina Plá”, Agulha Revista de Cultura # 8, janeiro de 2001.


SONHO DE SONHOS

Secreta noite ferida de minguante
cai onde não água ou terra.
Marcha a cortar o fio da lua,
minhas raízes, que estão onde não estive.

…Trarão meu coração, negra violeta
adormecida na margem de outro sonho.
Eu o chamarei e não saberá seu nome.
E ao cantar para mim não o compreenderei.

E levarei, caminho ao meio-dia
de vinte céus com sóis opostos,
minha angústia em vinte vozes sem meu sangue.

Hei de chorar mil anos sem meu pranto
e de dormir mil anos sem meus olhos
noite com vinte pétalas de lua.


INVENÇÃO DA MORTE

Esta sombra
a verás alongar-se cada vez como uma água vertida
sem remédio
como um manto caindo devagar de seus ombros
como se fosse ele mesmo arrependido e que quisesse
regressar sobre seus passos
– réptil de limpa morte sem cadáver –

Igual a verás enfileirar seu córrego
sobre o chão
sempre horizontal para a aventura

E também será a única
a dormir com ele reconciliada
com a sombra total
da qual se desgarrou
inimiga um dia de todos os espelhos.


DEIXA-ME SER

Deixa que me leve minha última aventura
Deixa-me ser minha própria testemunha,
e dar fé de me próprio
esquecimento.
Deixa-me desenhar meu último rosto,
apertar em meu ouvido os passos da chuva
apagando-me o adeus definitivo.

Deixa-me naufragar agarrada
a uma paisagem, uma nuvem,
ao voo humilde de um pardal,
a um broto renascente,
ou mesmo ao relâmpago
que abra em dois meu último céu.

Sujeita-me os braços,
agrilhoa meus tornozelos,
empareda minhas pálpebras.
Porém, uma vez tatuada uma flor na pupila,
crucificada uma aurora embaixo da fronte,
um beijo agachado na raiz da língua,
deixa-me ser minha própria testemunha.

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