Soledad Álvarez (República Dominicana, 1950)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Tenho treze anos e em minhas mãos, enfim, após buscar e buscar por todos os cantos e recantos da casa, a pequena chave de ferro com a qual posso abrir a estante de minha mãe. Um pequeno móvel de mogno, com duas portas de vidro através das quais posso ver os livros que devido à idade não me permitem ler; os romances, em sua maior parte, tornaram-se uma obsessão tanto por meu amor precoce pela leitura quanto pelo fascínio do proibido.

Os anos passarão e entre as experiências únicas que a literatura me trará, nenhuma como o momento em que, trêmula, escondida dos meus pais, abro e leio pela primeira vez o primeiro livro roubado, aquele que pelo título mais chamou a atenção de minha adolescente: Amante de Lady Chatterly, de D. H. Lawrence. E foi um raio, um tornado que me puxou do ordenamento do ninho para os caminhos contraditórios das realidades humanas.

Um ou dois anos antes, a explosão popular que se seguiu à execução do ditador Rafael Trujillo foi outro choque. Após a repressão de trinta e um anos, a multidão saiu às ruas e sem as algemas do medo, ao grito de liberdade, liberdade, eles derrubaram estátuas, saquearam as casas dos opressores. Essas imagens e a mudança social e política decisiva foram o contexto que enriqueceu a leitura do romance, o impacto interno do desejo furioso de liberdade de Constance Chatterly, a crítica dos tabus e das verdades sociais e a luta do novo contra o velho.

Você tem que continuar vivendo apesar de todos os firmamentos que ruíram. Essa era mais ou menos a posição de Constance Chatterly. A guerra derrubou o teto sobre sua cabeça. E ela percebeu que é preciso viver e aprender. Mais de cinco décadas depois, essa intervenção do narrador ainda ressoa em mim. Viver em plenitude, no ser e na consciência, na unidade corpo-espírito, um modo de vida, aprendendo-apreendendo com os sentidos, o pensamento, a alma. E com a palavra compartilhada transformada em luz diamante, ir da finitude ao infinito, da solidão ao encontro com o outro na experiência mais radical que podemos viver: a Poesia.

Escrever poesia foi e é para mim, apesar de todos os firmamentos que ruíram, um ato de fé, a crença que sustenta minha visão do mundo, uma forma de pensar e viver, de habitar o ser e nomear o sagrado. Poesia porque aspiro à reconciliação com a alma, ao resgate dos valores humanos, especialmente aqueles que nos fazem deixar para reinventar uma realidade mais essencial e justa a partir da nossa dilacerada condição humana. Dizer e dizer a mim mesma na busca febril, apaixonada e insone da palavra. Sem compromissos. Até doer.

SOLEDAD ALVAREZ
“Un modo de vivir”, Esferas del tiempo, 2020.


A BELEZA

A luz de quartzo rosa um entardecer
sobre as pontes de Florença
a luz o resplendor íntimo de nossos
corpos nus no abraço
a luz tão branca azulada na imensidão
de neve
a luz de centenas de vagalumes na casa do rio
onde nos amamos
a luz evanescente de um farol na menor
praça de Veneza
a luz dourada sobre os templos budistas de Bagan
a luz sua cintilação no poço de teus olhos
onde submerjo
a luz clarão que ilumina o verso de Lezama
a luz cantábile dos noturnos de Chopin
a luz do êxtase sagrado na experiência do Satori
a luz quietude
a luz silêncio
a beleza.


SENTENÇA

E disse então: tu és Soledad,
sobre tua solidão edificarei a minha ausência
e o poder do amor jamais poderá vencê-la.
Eu te darei as chaves do reino dos desvalidos,
e o que ates na terra permanecerá atado ao sonho
e o que desates permanecerá desatado no sonho.
Isto me disse meu pai. E se afastou para sempre.


AULA DE RELIGIÃO

Dizem que Deus está em todas as partes
que tudo vê.
Em todas as partes, Deus
todas as guerras a fome viva os estômagos
embalsamados
o olho imenso
de ciclope insone de Deus, é isto?

O sangue na rotura brutal do estupro
o punhal do assassino a ferocidade do mal
e não se espanta Deus não chora não toma partido
a eternidade imperturbável?
O insignificante também o vê Deus.
A aranha tecendo o fio de seda para a presa
a formiga em busca do alimento
também me vê quando me olho nua
diante do espelho
quando me penteio fumos às escondidas quero matar
e me envergonho?
Perdi a virgindade sob o olhar de Deus.
O grande voyeur.


ANTIERÓTICA

Conheço o centro de teu corpo
Palmo a palmo a pele e suas arestas
Dentes
Gestos que são dédalo
Até que encontro o caminho
Pela curva do pé
Até a dobradiça das pernas.

Conheço o poço onde me detenho
Para alcançar o manancial de teu sexo
Ponte de veias
Torvelinho de nervos
Pentelhos.

Estendido estás e em tua mão
O mamilo aponta desaparece
Uva branda na fuga de amor
Eriçada renovação
Quando fechas os olhos para me ver
Quando abres a alma
E sou teu corpo.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!