3 Poemas de Rita Indiana (República Dominicana, 1977)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Rita Indiana nasceu em 1977 em Santo Domingo, Republica Dominicana. É escritora, cantora e compositora e entre suas obras podem-se mencionar Rumiantes (1998), Cuentos y poemas (2017) y Hecho en Saturno (2018).


ILUMINAÇÃO

Estou me convertendo em pó
sentir como tudo evolui no vazio
como tudo interpreta
é outra coisa o que busco
o mar está tão longe
o mar não existe
voa
a tua está deserta
não há ninguém detrás dos espelhos e dos aparelhos
estamos sozinhos
e esta solidão preenche nosso colo
de bonecas carecas apertadas
alguém morre no perímetro de meus afetos
e renasço
em um cemitério de flores e parafusos de plástico
é uma mulher luva quem escreve agora
e toca com a sua língua açucarada a manhã
na cama de meu amante
que é um oráculo
que me revelou o mundo
em sua complexa simplicidade
a falsidade a gula dos mentirosos
o desenfreio
através do carvão líquido
descobri
a notícia dos novos idiomas
vi como a eletricidade é tudo
e como tudo
se desmorona girando
Newton comeu as máscaras
e o escárnio dos deuses
que são as únicas máscaras eternas
que equivale a dizer
que são imortais
hoje
de vez em quando um verso
invisível
poderoso
sobre a cidade murada
como um helicóptero ruminante
e beija as próprias
feridas
e dorme nos desperdícios
da cor de pistacho
da madrugada
recebo o pão de cada dia com a boca fechada
não dou graças
ou recordo o pão uma vez comido
saboreio a paz embranquecida
em um segundo
e sonhos
com os campos de trigo que percorrem
em alguma latitude
o universo
porque se eu morresse hoje
já teria tudo resolvido
eu me converteria em antena
uma inspiração vertical em todo o corpo
receber
tocar o céu e suas entranhas
repletas de sinais clandestinos
como uma arma de calibre extra
contra o mistério
tenho medo
esta é a única verdade absoluta
a minha cabeça há tempo perdeu seus instrumentos
os meus olhos sepultam todos os dias
o sonho de algum antigo encantador de serpentes
devemos desmantelar a comédia
o pudor é o maldito brasão de nossa humanidade
e o devemos a uma bruxa que nos revela
o sentido das ruas no reverso de um cheque
chegamos
conquistamos
o império do bife-bólide
o carcoma da rotina e a palavra vazio
somos superamigos, somos aviões em fuga
porém, onde?


NO NOME

Todas as manhãs
diante da igreja de Los Prados
fica sentado em um caixote
um louco que se chama se chama
há tempo que faz as vezes de jardineiro
os padres da paróquia o esclarecem e
pagam com comida em uma panela da cantina
para que ele cuide dos pátios enormes que rodeiam o templo
ao lado dos cães sarnentos do beco
há uma caminha feita pelo mesmo se chama
de jornais sujos de merda
e uma almofada de papelão
planta sementes se chama
dá-lhes água se chama
passa o ancinho se chama
limpa a relva se chama
as pessoas ao passarem pelas manhãs diante da igreja
com o carro marca Toyota porque são mais duros
velozes para os colégios e os caixas dos bancos
com os olhos avermelhados
se chama
diz adeus sem abrir a boca
e as pessoas gritam
como se chama
e ele responde
se chama se chama
e as pessoas
tão ávidas de loucos
se sentem contentes
se chama
se chama como qualquer dia do ano
de que dispõe a igreja católica, inclusive com
são barnabé por exemplo
santa rita de cássia o 22 de maio
quando ninguém felicita ninguém nos dias de seu santo
e mim por exemplo
se chama
voltando ao tema
se chama
como qualquer outro dia
posto à disposição pela igreja católica
e muito bem
para queimar calvinistas, alquimistas, doutores
ninfomaníacas casadas com o diabo, virgens que suavam
verde e cuspiam fogo
luteranos, escravos, criadores de seitas maravilhosas
em que deus era uma fruta ou uma gema
por exemplo
se chama
tendo isto bem claro
isto dos dias e da igreja
ergue o tronco e os ramos de seu corpo
e ainda com um pedaço de lista diária grudada
pela imundície na perna
ou um pedaço de chiclete azul na calça
vai receber sua ordem
se chama retira o lixo
se chama busca a poeira onde ela nem existe
se chama gosta desse limpo tão branco
anestesiante
também os padres
se chama
eu
que às vezes passo por ali
chutando uma caixa com o sapato
desde quatro quadras atrás
olho se chama
e se chama me devolve
o olhar
e eu não sei como se chama se chama
ou seja como de verdade se chama
e pergunto
como se chama
se chama se chama


WALKMAN LEZAMIANO

estou saindo
escorrendo o que
após a morte de Deus
me sobrou
os rostos levadiços
os cemitérios de olhos
milhares de ruas como confete
fita cassete de papel celofane
é a lembrança que não cede
saindo, cheirando, escutando
ca-mi-nhan-do uma noite
que desconhece a dimensão de seu esqueleto
caminhando esta cidade gerúndio
que desconhece seus militantes
é difícil abrandar os pés
contra o acelerador de um
carro
e desafiar o pedestre e a consumidora
com seu vestido de lixa
papel transparente
sorridente
cuidar das narinas que são regadas na
calçada
sugadoras
caixões de esterco nas melhores mentes da
cidade
barras perfuradas de estômagos
crianças que constroem máquinas de tortura
torres de controle sonoro
formigueiros quilométricos que derrubam as casas de
Naco
no mais breve silêncio
é difícil seu um golfinho
neste tempo
que aos eleitos lhes esmaga
a cabeça
este tempo que se olha no espelho
e aponta para si com a mão apodrecida
segurando um walkman
aqui o pedestre se esquiva da consumidora
e a fita cassete e a cadência
e a consciência dos assíduos
tem uma bateria de pilhas
que soa
tac taz.

1 comentário em “3 Poemas de Rita Indiana (República Dominicana, 1977)”

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