5 Poemas de Jussara Salazar

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Jussara Salazar, escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999], Baobá, Poemas de Leticia Volpi, [2002], Natália [2004], Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008], Carpideiras [2011] com a Bolsa Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012, O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas [2014], Fia [2016], Corpo de peixe em arabesco [2019] e O dia em que fui santa joana dos matadouros, prêmio Hermilo Borba Filho de literatura [2020].

Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. É Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo e Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.


nono

             Ao fim do dia nos reunimos
Para contar as sacas de grãos
À minha frente o longo corredor
leva ao fundo do armazém
meu avô veste branco
sua figura
longa
nariz adunco
curva-se para apanhar a farinha
que se derrama da cuia
Eu vejo meus pés
são os pés de minha mãe
Avisaram: você a verá surgir
Você será como ela
Terá os pés magros
E ossos modulados
tortos
Como teclados dissonantes
Ao fim do dia nos reunimos
Para contar os que ficaram
Cada dia alguém parte
Cada noite alguém desaparece
Ao fim da noite nos reunimos
As sacas de grão estão imóveis
Permanecem silenciosamente
Guardadas sob a fibra rude do algodão
Guardam um segredo
Anseiam pela terra negra e profunda
Que um dia as receberá
Ao fim da noite
Resta apenas aguardar
Outro dia
Meus pés são minha herança
A memória
apenas ela
Ao fim do dia conta
Quantas sacas de grãos
ainda restam

teu nome é quem

              A calçada
larga
sustenta
o passo cadenciado
da mulher negra
sustenta seu peso antigo
sua pele
bela
lacerada pelos olhos
de quem a vê
tão bela
a calçada larga se alarga mais
ao seu passo
as pessoas alargam a calçada
tudo se faz imenso
ao redor da mulher negra
vibra
grita
destoa
respira
sua estranha pátria
sua pele estrangeira
seu passo nativo
bela
lacerada por olhos
cortada ao meio
pela larga calçada
que se abre
pelos que se afastam
para não abraçar
sua pátria com olhos
a calçada é sua pele larga
são seus olhos
e sustenta os séculos
que a mulher negra carrega
no vestido
sobre ombros
antigos

canto para gregório

               A mãe disse
Portas
Janelas
Devem ser fechadas
A casa
Escura
Sussurrou uma revolução
Do medo
Da loucura
Das facas
Do leite negro das noites de celan
[outra vez]
Mas era apenas Gregório
Que caminhava pela estrada
entre as flores
Entre as pedras
Para alimentar a procissão de santos
Campesinos
De pés pesados
e mãos empoeiradas
Depois a mãe
Cansada de tanta escuridão
Abriu as portas
Abriu as janelas
E a brisa circulou
No pequeno corredor até o jardim
Atravessando os canteiros
As flores de colônia
Brancas
Como o linho alvo
Que Gregório vestia
Entre flores e pedras
Entre santos famintos
De água
De pão
A mãe desenhou o molde no papel amarelo
costurou o vestido da menina
Bordou pássaros livres
Abriu portas e janelas
E perdeu o medo

da liberdade

                dois pássaros
interrogam
rodeiam
dois pássaros

caravaggio
luz e sombra

dois pássaros
sem asas
bicos longos
como agulhas
rondam

a guerra
olhos vazados
corpo distante
dois pássaros
atados

caravaggio
luz e sombra

ars memoriae

Tenho uma vaga lembrança
De um pássaro
De um mar
De lembrar essa vaga
Essa água
De reprise de ondas
Filmes desbotados
De sombras
Marcas
De patas úmidas
De animais ao redor da casa
Peixes de celofane
Tenho uma vaga
Que se vai
Que se vem
Alga caravela de fogo
Boiando
Como uma chaga
Essa água
Chamada lembrança
Vagando chegando

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