5 Poemas de Alcira Cardona Torrico (Bolívia, 1926-2003)

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Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Gladys Mendía

Alcira Cardona Torrico (Oruro, 23 de janeiro de 1926 – 23 de maio de 2003) foi uma escritora e poeta boliviana. Pertenceu ao grupo Gesta Bárbara, originalmente fundado em La Paz em 1944 com membros como Óscar Alfaro, Julio de la Vega e Armando Alba Zambrana, entre outros. As obras poéticas de Cardona caracterizam-se pelo seu conteúdo social, especialmente aquele associado aos Andes e à mineração. Entre seus poemas mais destacados e conhecidos estão “Carcajada de Estaño” e o poema autobiográfico “Apóstrofe”. Sua obra Loa a la ciudad de Oruro venceu um concurso de poesia em Oruro em 1944. Outros livros dela incluem Rayo y simiente (1961), Temática del mar (1967), Letanía de las moscas (teatro, 1985).


RISADA DE ESTANHO

Ninguém mais do que eu, deve rir-se
babando-te meu cheiro sobre a cara,
mastigando-te os ossos, os lábios, os olhos.

Enrolei tua força na meia polegada
do teu descuido índio,
Pedro Marca!…
enruga-te agora, coração de coca
e lambe teus pés até a cara…

Com cinco pelos na barba tinhas ao chegar;
te trouxe o não saber de nada
e começaste a golpear com olhos cegos
o fogo do meu estanho
para tirar-te acima a canalha
desnudando-te a fome,
E hoje já está caçoando a tua alma…

Eu te coxei a risada
Pedro Marca!

Agora bebe o sabor de copajira
e sacode teu sangue congelado
que te guie o carburo pestilento
até encontrar teu nada.

Moagem, gira e regurgita o complexo,
cospe Engenho, ácido hipnótico, fumo, água,
que tremam a concentradora de seus ossos
até que do seu choro surja minha manhã…
Que ardam seus miolos no forno vermelho
e engrandeçam meu luto…

Pedro Marca!
Arrasta até meus dentes a teus filhos,
Frescos como chegaste tu sem saber nada,
Que ainda sinto fome de tuberculose…
de rir tanto quanto rio agora…

Pedro Marca!
De montanha me fizeste outra montanha
e igual dentro da mina, que na cidade que habites
hei de esmagar-te com esta gargalhada.


APÓSTROFE

E um dia,
Senhor das apóstrofes audaciosas
aproximando-se da dor, disse aos plácidos:
– Ouçam-me todos, com nudez e sede,
e sem disfarces!
Porque sangue
que nunca mais pingará,
já coágulo indelével, meu verso,
será para os que me leiam, noite amarga
Com Deus na ponta dos dedos,
escrito com os olhos e o ouvido,
farão inchar o pranto,
e então se sentirá terror de ter nascido.
Não me leiam em fresco entardecer
junto à multidão.
Leiam-me
quando as entranhas queimarem na noite de espanto
quando sentirem sobre os ombros
a viga que lhes carregaram como escravos.
Nem com mãe, com filhos, com esposa me procurem;
leiam-me soluçando,
pois há tédio e cólera no meu ser,
e medo
de carregar aderido este mau rosto
até o final do tempo…
Aranhas do esquecimento tecerão as pupilas
de olhos mortos que abraçam o silêncio,
e com elas, eu trarei até vossos sorrisos
o desastre do corpo.
Minha palavra,
chicote da fome distribuída
em perguntas de horror sobre os músculos,
repetirá terrível até os trovões:
– De quem é minha vida?
Responderão os nervos contraídos
de febril hospital,
quando a paciência mentida de enfermeiras
ferir
o último suspiro da angústia final.
Então, serão rouca minha voz, meus pés de fogo,
sem hora para ver, sem o silêncio
para sentir e compreender
o ritmo
de tudo o que existe e o que acontece,
o que chega girando em círculos escuros
ao cérebro do mal.
Já é tarde, vos direi.
Nas tranças ciganas, nas mãos guerreiras
escondida
está a morte, nas praças e festas.
E vós, e aqueles que estenderam a mão,
já tendo recebido o pagamento,
partirão pérfidos e covardes,
deixando-me em silêncio cabisbaixa e ridicularizada.
Somente eu permanecerei,
com as costelas cravadas na alma,
e meu sangue,
já coágulo no meu verso, para os que me leem,
será no infinito noite amarga!


MINHA VOZ

Não sei que voz – a minha?
soluça no vazio,
compadece-se da minha alma
sem poder se explicar
Solitária e vencida
abraça-se à distância
e a passos largos marcha
pela vida, ao acaso
O ouvido do mundo
lança-a à utopia
e entre montes de ruído
acaba por calar.
Não sei que voz – a minha?
é tão breve,
que jamais restarão para o fel;
o que depois nos fere,
irmã das nuvens,
fez nascer as rosas
e adormeceu o salgueiral.


EU RESPONDO

Deem-me apenas o ponto em que descubro
o eixo da vida
e eu vos darei a razão de toda criação.
Povoarei a existência
de alegria.
Atarei os ventos,
estenderei os ramos,
deixarei acesa
a luz mais tênue
para a melhor paisagem.
Azularei de brisas
o lago.
Acenderei a lua
e direi:
– O mundo é a verdade
em que palpita,
o coração do sol,
a fé do santo,
e o bom espírito da formiga. –
Mas antes,
deem-me a razão em que descubro
o eixo da vida.
Só encontro caminhos sem espaço
que duvidam
e retornam e se oxidam.


LAMENTO DOS ABISMOS

Encontrei o delito e lancei sombras sobre ele,
eu que com chicotes rasguei o rosto do mendigo,
eu que neguei o porquê
de todo abismo,
eu que ergui uma pomba e uma oliveira,
saio com a dor pendurada na vida,
rasgado o coração, o tempo fugiu,
compreendendo o pecado e abençoando,
a moeda pagã do cinismo.
Como neguei a escravidão
sobre a chama verde do sentido,
as mandíbulas da dor e da miséria
que espreitavam a criança,
quando estava com o corpo nas mãos, esperando
a impossível presença do prodígio?
E eles pregavam:
– Cristófilos, ouçam, com rosto sereno eu digo a vocês,
não há mal, e aquele que delinque
é simplesmente um vulgar assassino.
Enquanto isso,
do melhor coração caiu um esquecimento,
dos peitos de carvalho o tempo sangrou,
o amor se desfez e sobre o rio
morreram aves puras.
Mãos que eram suaves foram levadas pelo vento,
até derrubá-las com um golpe furioso
nas negras rochas do destino.
Para viver, os espinhos punham feridas,
os abismos choravam,
e era difícil correr ou parar, ou cair, ou ser sepultado
em um grito terrível.
E os dias gemiam, e os males eram mais e mais
e mais, como chicotes
sobre os servos
derrotados.
O terror apareceu;
as estrelas, as colinas, a essência das coisas,
sofreram punição.
Tornaram-se impossíveis.
Sobre os fracos caíram facas
e tiveram que ser amaldiçoados,
que serem obscenos,
que serem ímpios!
Então, eu parei tardiamente
para responder à exatidão do século:
Eu que lancei sombras sobre o choro do caído,
como pude passar assim
totalmente sendo eu mesma?
O que era essa mão que encontrei pendurada?
Como não recolhi
as pegadas não extintas do caminho?
E aquela solidão da manhã de um bêbado,
e aquele que já não quer nada, e aquele que espera
por seu crime e ódio?
Como não percebi a ultraje e o despotismo? Onde eu estava
naquela tarde em que condenaram
o ladrão de tímpanos destruídos?
Amarraram-no ao medo
e com cinismo
arrancaram-lhe as fibras da vida,
roubaram seu “eu”,
cravaram as mãos até deixá-lo
com as palmas vazias de um asilo.
Depois, sacudiram seu peito
e quando viram que ainda suas pobres vísceras pulsavam,
quando sua sombra ardente era uma louca caminhada,
o impossível ser bom desorbitado,
com sua culpa de mendigo tremendo,
o jogaram no chão,
o chamaram de cretino
e ficaram manchando seu nome
nas humildes folhas de sua origem.
Como pude negar o porquê do abismo
com esse nome em milhares do meu século?
Erguerei
a pomba e a oliveira,
me diz o coração,
e mal acredito que há oliveira e pomba no chão.
Minha ferida é mais cruel que a agonia.
Derramei até a última dor. Agora estou
indolente, sem eco nem suspiro,
despedaçado o amor e abençoando
a moeda pagã do cinismo.

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