2 Poemas de Tristán Solarte (Panamá, 1924- 2019)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils


Tristán Solarte (Panamá, 1924-2019). Nasceu na cidade de Bocas del Toro, República do Panamá, em 1º de junho de 1924, onde concluiu seus estudos primários, também estudou em San José, Costa Rica. Atuou como técnico de laboratório, romancista, poeta e jornalista. Morou por um tempo em Buenos Aires, ligado à representação diplomática de seu país e, posteriormente, exilado, no México e na Costa Rica. Trabalhou por muitos anos com jornalismo de opinião no jornal La Prensa. Sua coluna Em poucas palavras ficou famosa. Foi Editor Associado do jornal La Prensa. Em 1986, por seu trabalho jornalístico, foi distinguido com o Premio Internacional de Periodismo María Moors Cabot. Eleito para ocupar a cadeira E na Academia Panameña de la Lengua em 5 de setembro de 1979. Em 2004, a Academia Panameña de la Lengua concedeu-lhe, em resposta às suas credenciais literárias, a Orden al Mérito Intelectual. Em 8 de janeiro de 2019, recebeu a condecoração nacional da Orden Manuel Amador Guerrero, na categoria de Grande Oficial, por sua contribuição à literatura, ao jornalismo de opinião e investigativo. Foi o diretor emérito da Academia Panameña de la Lengua de 18 de julho de 2018 até sua morte. Vencedor em diversas ocasiões do Concurso Literário Ricardo Miró, nas seções de poesia e romance. Na categoria poesia, ganhou o segundo lugar duas vezes: em 1948, com Voces y paisajes de vida y muerte; em 1953, com sua obra Aproximación poética a la muerte y otros poemas; em 2001, ganhou o primeiro prêmio com Viene de lejos. Na seção de romances, ganhou o primeiro prêmio duas vezes: em 1951, com El Guitarrista e em 1954, com El Ahogado, romance com várias edições e traduzido para o francês; a primeira edição é de 1957 e a segunda edição, recomendada por Ernesto Sábato à editora argentina Fabril Editora, S.A. aparece na Argentina em 1962, além de muitas outras edições que se seguiram; também ganhou um segundo prêmio, em 1965, com o romance Confesiones de un magistrado. Mereceu o Prêmio Rogelio Sinán 2004, pela excelência na obra literária de toda uma vida. Tristán Solarte faleceu na tarde de domingo de 24 de fevereiro de 2019, no Hospital Nacional da Cidade do Panamá. Ele tinha 94 anos.


AO REDOR DA FOGUEIRA

Reunidas para falar as senhoras,
sob uma lua pálida e minguante,
revisam uma por uma suas dicas:
contemplando o fogo agonizante.

E uma delas cobre minha audição,
talvez porque teme que não aguente
fábulas que não possuem lição,
histórias sem final edificante.

Como se um touro morto se lançasse
para a arena por mim, e me alçasse
com a letal navalha de seus cornos,

graças a um descuido da senhora
surgiu em meu ser a Tulivieja
a preparar-me para o fogo eterno.


APROXIMAÇÃO POÉTICA DA MORTE

«Y esos muertos quisieran un gabán
para arropar sus sueños bajo tierra».
Demetrio Korsi, «Sinfonía en gris»


Fomos ao cemitério, lembra? Para visitar
o túmulo do seu irmão.
O cemitério localizado fora da cidade,
na beira do mar
como um porto de extravio.
Minha vida está cheia desses montinhos de terra
descuidados,
daquelas pastagens furiosas
que disputam o sustento dos mortos.
Aqui e ali vagavam, entre os escombros
das sepulturas, crocantes caranguejos brancos
como feitos de cartilagem faminta.
Olhou para mim então, pensando talvez
em como ficaria sob a poeira, descarnado.
Seus lábios roçaram minha bochecha
em um beijo frio e compassivo.
Sorri para você então como sinal de assentimento
e compreensão.
Você me lembra minha mãe no fundo de seus olhos.
Minha mãe era alta e bonita; quando morreu, implorou, não
me enterrem no povoado, naquele cemitério horrível.
Eu vi ondas assustadoras
retirar os ossos das sepulturas,
espalhados na areia com a espuma sibilante.
À noite a morte se faz com a voz do mar
quebrando nas falésias.
Tudo se cala cheio do ser perdido
e se encharca em seu hálito extremo.
Oh! Tão só estão me deixando
todos esses anos de separação;
todos os parentes que morreram
nas sobremesas desses jantares fabulosos;
as vezes que pintaram sua casa e a minha,
minha casa, minha linda casa de madeira
agora convertida em hotel.
Quando passo perto de seu bloco adormecido,
pensamentos sem sentido
obscurecem o presente:
regra de três composta e as viagens de Colombo.
Frações e as partes do corpo humano.
Uma vitrola queixosa portátil
e as músicas aquelas
que eram cantadas com os brônquios.
Tudo veio da mão aos seus joelhos
e em suas coxas os medos são esclarecidos.
Aqui do violão e das aulas de desenho,
e Josefina Guzmán em “tempos da serra”.
André Bretón e a escrita automática
e a verdadeira poesia em cuja busca nos perdemos
e o verso em cuja espera
passei os anos de amor.
(Cada vez mais distante, mais distante,
brilhante e salvo à distância
e enquanto o sonho afirmava
em minhas entranhas seu domínio).
Vamos levantar nossas mãos suadas
para que plenas alcancem a luz crepuscular
que aflige o fundo da minha alma
com esta perspectiva de cruzes,
de cercas de madeira, de pântanos sibilantes.
Cada nome é mais doce que o outro,
mais doce, e esses limites cinzentos
não podem contê-los.
Daí a plácida melancolia que agita o vento
ao nosso redor.
Daí a deliciosa fuga e o fogo ambíguo
que sente no peito.
Sério: a morte não significa nada
se não se pode esvaziar até com a mesma profundidade
o calor da alma e o calor do corpo:
se com eles podemos fazer um filho varão a tempo.
Mas olhe aqui, ali, atrás daquele tronco podre,
essa lápide mofada: mil oitocentos e sessenta…
não sente como um brilho sagrado o arrebatamento,
os agradecimentos de não sei quantas ansiedades;
a bondade, a dedicação,
o ciúme sem sentido, o xote de longo alcance,
a voz preciosa e grave
e um pouco de cansaço satisfeito?
Assim será comigo.
E você vai levantar uma vala contra o vento
e a maré.
E virão os meses secos
para queimar as silvestres margaridas.
E inverno, isolador de vontades,
para remover a terra úmida,
para colocar sua pá fria em meus ossos.
Do meu coração se estenderá para a praia
uma fosforescência azul exacerbada pela espuma,
uma cotovia misteriosa,
um suspiro delicado.
E daqui a muitos anos, no mesmo lugar,
um poeta jovem e pálido e apaixonado
virá meditar sobre a essência da morte
e da vida,
na essência do amor e do esquecimento;
e você vai ouvir o vento vindo
minha voz desfigurada pela espera,
e no túnel ecoante de sua alma sentirá
encadear uma a uma as sílabas melodiosas
desse verso desejado.
E você estará lá também, nas dobras
mais profunda das letras,
no mesmo seio da iâmbica, celestial doçura,
amada até o silêncio e a loucura.
Veja como sobe para o céu o halo dourado
e teso da tarde.
Não sente encolher-se sob aquele montinho de terra
um corpo adolescente?
Em que outra sepultura se agitará o fim de seu abraço?
Então à noite nos cingimos nus em seu leito,
e talvez a morte também se aconchegue ao seu lado,
entre os lençóis,
como uma adolescente medrosa;
e, assim, nos perdemos no prazer, nós dois, nós três,
unidos pelo medo e pela idade.
Oh, minha pobre amiga! Oh, minha pobre amiga:
Estou ficando tão só! Estou
ficando tão só!
O vento continuará com seu clamor de bronze
pelo espelho tecido do palmeiral.
E pelas ilhas vivas irão novamente
sinistros homens de embarque
sob o abrigo do sonho e da sombra.
Navios carregados com papéis empoeirados
atravessarão o mar em altas horas de silêncio.
O rei das chánguinas decapitado
assombrará os higuerones.
As pontes suspensas das estrelas
chegarão à geada dos rumores
com a lua na visão lésbica do jardim.
E o capitão negreiro mostrará a língua para o tubarão
e a cada uma de suas rêmoras:
princesa nua de carnes platescentes:
o céu se nutrirá do seu corpo
cobrirá sua boca o paraíso.
Enquanto isso, voltaremos para as sepulturas
e ao desenho sombrio da luz.

Voltemos ao silêncio transbordante de seres contidos.
Voltemos para a tristeza que te domina
nesta tarde renascida.
Voltemos aos excessos do crepúsculo
sobre as águas da baía.
Voltemos à morte
e à compreensão poética da morte
e à explicação um pouco pobre
que ouve deslumbrada.
Deve se sentir livre do medo.
Gostaria de lhe dar um pouco da minha paz.
Gostaria de lhe dar a compreensão da razão do céu,
a razão de Deus que nos ouve pensativo;
a razão do anjo da guarda e a razão do pó,
a delicada razão do pó que não aguenta mais.
Gostaria de lhe dar em detalhes todas as razões
do imenso orgulho que me cega,
e por que de repente adquire um sentido luminoso
a vida desse idiota, desse pobre louco
que em vida só falava com gagueira rouca e grudenta,
e cuja sepultura foi coberta
de margaridas prodigiosas;
Contar-te sobre o abismo que iluminou seu irmão;
da difteria que arrebatou a menina,
e como, no exato momento de sua morte,
Deus se fez presente através de seus olhos
sonolentos e cansados.
Falar sobre todas essas coisas que parecem
misteriosas e distantes;
mas que são singelas, simples e singelas de coração;
e cuja verdade às vezes você vislumbra
no resplendor do sonho,
nessa luz que vem até você duvidando,
arrastando sua terrível clareza
entre os jovens que desnudaram a tua infância,
absorventes higiênicos, espelhos quebrados, gatos pretos,
zumbidos que se estendem ao infinito
o inferno negro de suas pálpebras fechadas,
fantasmas queixosos e modestos
em cuja fronte brilham gemidos,
e cidades sobrepostas na sombra gelada
cheias de malícia e de sangue.
Gostaria que nesta conversa ilustrada de símbolos
você recebesse o maior tesouro,
o mesmo tesouro que acumulei em uma longa
e curta vida de êxtase e decepção:
o tesouro que escondi da maldade e da ganância,
do voluptuoso, do sábio, do cantor solo, do rico,
do pirata, do padre, dos poderosos,
do homem da vida
e das moças festeiras.
Gostaria de quebrar os limites,
a dura cerca de palavras
que me separa de seu ser amado
e me condena a passar sozinho a longa
e escura noite da minha espera atormentada.
Que escute com atenção
e coloque todos os seus sentidos;
que o céu acima confirme sua beleza
e repousa a alma
rente com o silêncio dos mortos,
no nível de sua atenção impecável.
Mas sei que é impossível alcançar com discursos
ao mesmo coração.
Sei que é inútil a palavra
se o ouvinte não tiver se limpado antes
de toda alegria e lágrimas,
se não renunciou à dor
e à angústia,
ao prazer da sombra
e ao gosto amargo da dança e da música.
Se ainda espera dos números a resposta,
do esquecimento a paz,
e da noite o sonho.
Talvez eu tenha chorado um pouco de tristeza.
A morte me abriu todos os seus segredos,
todas as portas que fechou para a ciência
e para a bruxa,
e meu coração pesa de tanto que estou perdendo
nas sombras desta noite que surge sobre nós.
Estou sereno: as horas de uivos e ranger de dentes
se foram para sempre.
Estou disposto a qualquer extremo,
fitando os abismos revelados,
peito valente e rosto erguido.
Estou disposto a enfrentar tudo
e dizer um SIM grandioso a todas as formas
que voltam para a luz depois do vazio.
No confim do vento o caracol me espera
e minhas mãos tremem de impaciência;
mas me sinto melancólico,
cheio de resignação
e desesperança por esta paz que não busquei;
por essas sepulturas que se erguem em minha vida,
por essas nuvens cheias de parentes desaparecidos,
e por Lulu, a tia-avó de olhos tristes
que bebia gin com gotas amargas
para aliviar a surdez;
e por Thomas, aquele com as minas de ouro e o bigode aparado,
e pelo tio Juan, velho e nostálgico, com dedos amarelos,
e tantos tantos que me afogo em silêncio
e as lágrimas surgem nos meus olhos,
e deito minha cabeça em suas coxas maternais
enquanto Édipo pisca maliciosamente para mim,
relâmpagos azulados
que sobem do fundo do abismo
que cercam minhas pálpebras fechadas.
Diante da morte, só morrer é possível,
só o recolhimento nos dará seu clima excessivo e cruel.
“Perchance to dream!”; mas não haverá sonho que valha a pena
“en ese sueño de la muerte” do velho Shakespeare;
não haverá visão que nos devolva o olho
as suas delicadas superfícies nem às suas profundezas plenas;
nem seios que nos machuquem tão fundo
para dar ao coração a sombra de uma batida.
O sexo será engolido pela terra.
E só do calor que os outros sentem à noite,
do calor que recolherão do ar, do calor da alma
e do calor do corpo de que falava,
estaremos de volta ao reino doce das coisas,
no reino doce do ciúme
e da mudança
e na beleza impura das ilhas e do verso.
Por isso, dê-me sua mão e vamos calar a esperança
e os medos viscerais, úmidos e escuros.
Dê-me sua mão, a mão quente e fina
já marcada pela noite.
Silenciemos a simplicidade meridiana do mistério.
Deixemos o povo em seu tremor mortal;
deixemos que falem de nada, de fogueiras infernais,
de almas em dor, de castigos tomados
através da eternidade ao tempo;
do ranger de dentes,
da ressurreição da carne,
do prêmio celestial aos bons e submissos,
do julgamento final,
e também aos outros, aos da reencarnação,
e os sábios que dizem que tudo termina com a vida.
Diante da morte, só morrer é possível,
e ao morto só resta
aproveitar sua morte em paz.
Só te resta se satisfazer com sua morte
por toda a eternidade,
sem interferência, sem testemunhas
alheias à morte,
sem orações de duvidosa eficácia,
sem decoração de luto, sem novenas,
sem xícaras de café e sem coroas insultantes.
Diante da morte, só morrer é possível,
só o recolhimento nos dará seu clima excessivo e cruel.
E os que voltam à vida?
Aqueles que voltam à vida e encontram
seu quarto ocupado por estranhos,
e com o irmão mais novo calçando seus sapatos,
e que a sua noiva voltou a corar às bochechas?
Já sua substância foi subtraída do mundo,
e a sombra da árvore e os jardins brancos
não se conformam com a sua presença,
e terá que se sentir delicadamente rejeitado
pelas coisas
e pelos casais que se enroscam à noite.
Já não tenho lugar aqui, diz cheio de nostalgia,
Já não tenho lugar aqui, já não tenho lugar aqui.
E voltará na ponta dos pés ao panteão,
e enquanto isso, outros ossos já ocupam sua sepultura
e outro morto se interpõe entre ele e o silêncio,
que é a verdadeira essência deste mundo e dos outros.
Agora sim que estou sozinho, pensará, agora sim que estou sozinho,
sozinho na vida e na morte.
E acomodando-se com sombras sem sentido,
Se deixará engolir pelo frio insondável da noite.
Por isso me dê sua mão e vamos calar
as visões estripadas que se aproximam.
Diante da morte, só morrer é possível,
Não devemos resistir ao impacto terrível.
Deixe-se levar pelo silêncio
e o resto te será dado por gracioso acréscimo.
Dê-me sua mão e vamos calar
as promessas que se nos enfurecem.
Vamos dar-lhes um adeus grave e melancólico
para essas cruzes, para essas sepulturas,
para este cemitério nos arredores da cidade,
à beira do mar como um porto de extravio.
Dê-me sua mão e vamos
vamos para a cidade, para sua casa, para o calor dos meus mortos,
copular na calada da noite,
do silêncio, do esquecimento e do medo.

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