3 Poemas de Belkis Cuza Malé (Cuba, 1942)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Belkis Cuza Malé (Cuba, 1942). Poeta, artista plástica e jornalista. Logo após ganhar uma menção honrosa no prêmio Casa das Américas, em 1962, com seu segundo livro, Tiempos de sol, conheceu o poeta Heberto Padilla, com quem passaria a viver a partir de 1966. Belkiz confessaria posteriormente jamais haver tido o menor entusiasmo revolucionário, e recorda que “fazia jornalismo cultural, só ia ao jornal para entregar meus artigos e entrevistava constantemente escritores e artistas estrangeiros que vinham a Cuba. Acho que entrevistei todo mundo, de Alberto Moravia a Nicanor Parra, passando por Martha Traba, Vargas Llosa e a maioria dos poetas e romancistas espanhóis. Pintores e artistas de teatro também não foram poupados. E com alguns outros, como Julio Cortázar, tive o privilégio de falar e conversar várias vezes sobre literatura”. Em 1971 foi acusada, ao lado de seu marido, de atividades subversivas contra o governo. Ela e o filho conseguiram, anos depois, sair de Cuba, indo residir nos Estados Unidos. Um ano depois, em 1980, seria a vez de Heberto. Em 1982, Belkis fundou, a seu lado, em Princeton, a revista Linden Lane Magazine, especializada em literatura e arte de cubanos no exílio. Em 1986, foi a vez dela criar La Casa Azul, centro cultural e galeria de arte cubana, em Fort Worth, Texas, onde se estabeleceu.


AS CINDERELAS

Nós somos as Cinderelas.
O Sr. Botticelli pintou para nós
as três fadas madrinhas
Não somos inocentes.
O Príncipe nunca nos beijou.
Nós não pisamos em seu quarto,
nem lambemos a sua barriga.
Vivemos na cozinha,
nossa lua é o fogo.
Nossos pés são enormes;
um prolongado banho não nos faria mal.
Andamos com saias rasgadas,
com os cabelos desgrenhados
e comemos pão velho.
Não somos inocentes.
De negrinhas, feias ou putas
Fomos chamadas no concurso de Miss Universo.
Mas nós gritamos (as línguas sujas)
merda para o cu do rei
e merda para seus ministros,
embora eles se enfureçam com nossa peste.


EU, VIRGINIA WOOLF, CORRENDO PARA A MORTE

A solidão e o silêncio nos expulsam
do mundo habitável,
que olhos verão sem suspeita
as águas do rio em que apodreço?
Que mendigo roubará meu único corpo,
e por que ele iria querer se vestir de mulher?
Por quantas noites serei o espírito do pobre diabo
que acampa em Londres na garoa?
Eu reconstruo o pecado.
Eu sei de cor.
Um dia após outro
apagam a lâmpada central,
fecham ruidosamente portas e janelas
e ninguém mais oferece recompensa pela nossa captura.
Um dia após outro
o mundo se torna tão habitável
que não estamos mais nele.
Eu envelheço.
Sob a máscara de uma grande dama subjugada
eu envelheço,
não acho mais bonito o teu nariz
a tua curiosidade insaciável de silêncio.
O inverno logo passará, para nunca mais voltar
ou não estarei aqui para esperar.
Eu serei tão velha que eles vão rir de mim,
que não vão entender nada,
que ansiosos esperarão pela minha morte,
para quando tudo não for mais
do que cobrir os espelhos,
arrastar meu corpo pelas escadas,
maquiar meu novo rosto
e me vestir com o vestido de noiva
que eles secretamente lavaram antes.
Eu não vou lhes dar gosto.
Eu não vou envelhecer.
Eu não vou morrer.


COMPRO MÓVEIS ANTIGOS: CADEIRAS, CAMAS, ARMÁRIOS…

Os compradores de móveis antigos
amiúde esquecem o amor,
roubam uma cama ou uma cadeira
aproveitando que seus donos se mudaram
para sempre,
que embarcaram com a velhice e o entardecer,
que não tiveram tempo de decidir o destino
dos objetos
e no último minuto a casa teve que ser desocupada,
abandonar a felicidade que ali houvera
e sair sem se despedir da cozinheira.
Os compradores de móveis antigos
apagam a poeira,
qualquer mancha de óleo na superfície
e até inventam uma história feliz
para o novo proprietário:
“Aqui está sentado o Rei Midas.”
“Nesta cama nasceu Maria Antonieta.”
Porém os vestígios do velho corpo
nunca desaparecem
nem a fatalidade, nem o orgulho
e o novo dono começa a pensar
que ele é o outro,
que tudo que toca vira sal e água,
que sua esposa perdeu a cabeça
e que não há como não morrer como os outros.

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