Curador e tradução de Floriano Martins
Um jovem mais dedicado à poesia; um novo poeta verdadeiro – e a promessa certa de um grande poeta; e a luta contra o amanhecer e seus ruídos obscenos; e o começo de cada dia, indefeso perante a língua inimiga. Começar e recomeçar. A atroz e renovada profecia de Rimbaud: Outros horríveis trabalhadores virão e começarão pelos horizontes onde o outro caiu. Carlos Martínez Rivas é um deles.
OCTAVIO PAZ
“Legítima defensa”, 1954, incluído em Las peras del olmo.
Carlos Martínez Rivas faz parte dos mitos nicaraguenses, como Darío, como Sandino, como tantos outros. Sua vida se tornou uma lenda que o poeta desfrutou em vida. A sua é uma lenda escrita à mão livre para protagonizar anedotas incomuns. Ele pertencia àquela raça de homens para quem a vida é a sublime arte de viver. Ele era um poeta, nada mais do que um poeta porque ele não estava interessado em outra coisa senão poesia. Sua própria vida era poesia, a poesia de um sonhador que nasceu para desfrutar os prazeres terrenos. Por isso foi poeta, porque gostava de livros, de ler, de conversar, de beber, dos prazeres que a vida espera de quem sabe gozar esses prazeres. Outro teria escolhido a sobriedade da vida para se dedicar à escrita. Ele não. Ele investiu a profissão de fé na literatura para transformar sua vida em uma questão de escrita.
Esse homem de estatura mediana, muito culto, grande conversador, bebedor exemplar, deixava rastros de sua presença por onde passava. Já em 1966, o poeta e diplomata nicaraguense Luis Ibarra falava-me com fervor, comentando com entusiasmo sobre as vezes em que Martínez Rivas esteve em Paris e como o mais jovem e até o próprio cardeal ouviu atentamente as descobertas que ele referia sobre a literatura. Sempre foi apaixonado pelos franceses, principalmente por Baudelaire e Mallarmé.
Em Madrid viveu em duas épocas diferentes. Primeiramente, por volta dos anos 1950, coincidiu com José Coronel Urtecho, época em que Coronel vivia o maior ultraje de sua vida. Martínez Rivas não podia faltar, tornou-se um dos acólitos do poeta pervertido com uma namorada que era prostituta e uma vida dedicada ao álcool e aos bordéis.
A última época foi entre 1961-64 como Adido Cultural da Nicarágua. A sua vida continuou a mesma, a ponto de a pessoa de Martínez Rivas se tornar um personagem real no romance El giocondo de Francisco Umbral.
Aos dezoito anos publicou seu longo poema El paraíso recobrado (1943) na Nicarágua, mostrando uma imaginação poderosa e original, e desde então algo grande se espera dele. Ou seja, aos dezoito anos ele se tornou uma espécie de enfant terrible de quem mais se esperava. Dez anos depois, publicou no México sua obra-prima La insurrección solitaria (1953), da qual foram impressos mil exemplares. Era um livro mágico, iluminado pelo brilho e sufocado pela palavra que o tornou famoso. Seu título ecoa entre os poetas da América Latina como sinônimo de perfeição. Octavio Paz elogiou o livro. O poeta nicaraguense Beltrán Morales, já falecido e também um homem amaldiçoado, disse que na Nicarágua poderia haver um terremoto, um furacão, mas que o livro de Martínez Rivas sobreviveria a qualquer catástrofe. E é verdade, o livro é uma matemática complexa da palavra. Uma voz que em 1953 mandou uma mensagem diferente.
RICARDO LLOPESA
BEIJO PARA A MULHER DE LOT
E sua mulher, tendo virado o olhar para trás, tornou-se uma coluna de sal.
Gênesis, 19: 26
Que me digas algo mais.
Quem foi esse amante que zombou do bom Lot
e ficou sepultado sob o arco
caído e a cinza? Qual
dardo te atravessou certeiro, quando ouviste
os dois anjos
recitando a preciosa novidade do perdão
para Lot e os seus?
Emudeceste pálida, suprimida; ou foste
de quarto em quarto, fingindo
um rosto ao regozijo dos justos e a pressa
das serviçais, suadas e limitadas?
Foi depois que se tornou mais difícil fingir.
Quando caminhavas atrás de todos,
preguiçosa, atrasada. Escutando
à distância o silvo e o estrondo, enquanto
o ar do castigo
já roçava os teus soltos cabelos grisalhos.
E retornaste.
Era estranha na noite essa parte
aberta do céu fagulhando.
Quase alegre o espanto. Foguetes sobre Sodoma.
Ouro e carmesim caindo
sobre a quilha da cidade a pique.
Para ali partia como flechas o teu olhar,
buscando… E talvez tenhas visto. Porque o olho
da mulher reconhece seu rei
mesmo quando as nações tremem e os céus levam fogo.
Durante toda a noite, diante de tua cabeça fechada
de estátua, choveu enxofre e fogo sobre Sodoma
e Gomorra. À aurora, com o sol, a fumaça
subia da terra como o vapor de um forno.
Assim encheste a taça da iniquidade.
Ultrapassando o castigo.
Usurpando-o com a força do transbordamento.
Era preciso afundar, com o ídolo
estúpido e dourado, com as tâmaras,
o hexacórdio
e o raminho com folhas de coentro.
Para não renascer!
Para que tudo durma, reduzido a perpétuo
monte de cinza. Sem que surja
dali nenhuma Fênix avantajada.
Se tudo ocorreu assim, Senhora, e eu
Estava bem contigo, isso não saberemos.
Porém uma estátua de sal não é uma Musa inoportuna.
Uma esbelta reunião de minúsculas
entidades de sal corrosivo,
é cristaloide. Acetato. Arestas
de genuína expressão. E não a rente
colina adornada pelos anjos.
A suspeitosamente sempre-verdejante Söar
com o branco e senil Lot, e as duas meninas
núbeis, delicadas e porquinhas.
AS VIRGENS PRUDENTES
virá na noite, como ladrão
Quem é essa mulher que canta
na noite? Quem chama por sua irmã?
De país em país, essa rapsoda que voa ao vento
sobre o mar tenebroso onde se contorce o céu?
Venha ao encontro!
Ela, a enamorada.
Ela nada mais, y sua irmã.
Esse vento que canta?
É a voz do amor. A voz do desejo do amor que se ergue
na noite alta.
Sobre a potência da cidade, essa voz que gira.
Essa área deliciosa!
Apenas essa nota vibra na noite gelada.
Essa arpa solitária tangida na noite vazia.
Esse único silvo penetrante da pureza.
Apenas essa serenata encantada.
E o amor das irmãs!
Das estrelas protegendo suas chamas
para o Desejado que tarda.
Nada senão isto: o canavial das desposadas
e a sombra alargada do ladrão que escala.
Canta a noite e as planícies solitárias
submetidas ao feitiço da lua. Claras,
subitamente vazias ao passo das irmãs.
Ao passo do banco branco das virgens irmãs.
As que se entregaram ao amor.
A quem não lhes foi concedido senão o amor.
As Virgens Prudentes cochichando na alcova estrelada.
Baixando a voz e subindo a chama.
Fechando-se em meio à sua sombra. Desaparecendo detrás de sua lâmpada.
Aqui tens apenas abismo. Aqui só existe um ponto fixo:
o candelabro quieto ardendo e a auréola fria.
Aqui vais rasgar o véu.
Aqui vais inventar o centro.
Aqui vais tocar o corpo
como um cego toda o sonho.
Aqui poderás soprar e apagar teu segredo.
Aqui finalmente poderás ficar morto.
MUNDO
Deus fez a agua
O Diabo a pôs no vinho
Deus fez a janela
aberta para o homem
interior
O Diabo a porta
fechada para o que está fora
deus fez o pão
o Diabo seu preço
Deus fez as melhores
palavras ocultas
O Diabo as que sobram
Deus nos fez juntos
O Diabo nos falsificou
Separados
Deus te fez uma
O Diabo outra
Eu te esperava.
Passaste sem me ver.
Eu então te escrevi um epigrama
como uma urtiga.
No entanto, ai, tu não o lerás.
Tu nunca lês versos, minha menina!