3 Poemas de Octavio Paz (México, 1914-1998)

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Curadoria de tradução de Floriano Martins

As técnicas progridem ou diminuem. Por exemplo, voltando ao caso das armas, o arco foi substituído pelo rifle, mas de forma alguma a Eneida ou a Divina Comédia substituíram a Ilíada. As obras de arte são insubstituíveis.

[…]
Obviamente, as técnicas influenciam o caráter das obras, mas não alteram o seu valor. Exemplo: a pintura a fresco exige uma certa forma muito diferente da pintura a óleo, mas de forma alguma se pode afirmar que Della Francesca ou Giotto representam formas retrógradas de pintura em comparação com Ticiano ou Veronese.

[…]
Portanto, não se pode dizer que não haja progresso na arte.

[…]
Em termos gerais, as ferramentas e utensílios foram construídos pelo homem para satisfazer certos tipos de necessidades. Consequentemente, o valor de uma ferramenta é definido por sua utilidade. Mas o homem não é uma ferramenta, ou um instrumento ou meio, mas um ser a quem todas as ferramentas se referem. Ou seja, um ser que usa ferramentas.

[…]
Na minha opinião, a missão essencial da literatura é descobrir e revelar esse ser. Ou seja, o homem. Nesse sentido, é possível falar de verdade literária. A utilidade de uma obra literária consiste na sua verdade: na revelação que a arte faz do homem. A arte descobre o ser do homem ou uma parte do ser do homem. Mas ele o descobre de forma concreta e descobre um homem específico. Quer dizer, a um homem determinado, imenso, em um mundo histórico concreto.

[…]
O homem concreto é por natureza ou definição um homem livre.

[…]
Um trabalhador e qualquer ferramenta são semelhantes nisso: ambos são instrumentos, meios. A ferramenta não pode se rebelar contra sua condição: em vez disso, o homem pode fazê-lo, ele pode lutar. Aquela parte do homem capaz de se rebelar, de escolher, de lutar ou ceder, de se conquistar ou de se alienar é o que chamaríamos de sua liberdade. E essa parte, indefinida por natureza por ser um feixe de possibilidades, é o que a arte tenta revelar. Portanto, pode-se dizer que a arte tende a expressar o homem em sua liberdade criativa …

[…]
A liberdade do escritor não é algo abstrato, mas algo que se conquista dia a dia. Em sua obra, em seu trabalho, melhor dizendo, de revelação do homem, o escritor deve lutar contra todo tipo de limitações e imposições. Alguns pessoais e outros externos. Nesse sentido, o trabalho do escritor é muito diferente daquele do psicanalista, por exemplo.

OCTAVIO PAZ
Fragmentos de uma entrevista dada a Rosa Castro, México en la Cultura, 1954.


A POESIA

Chegas, silenciosa, secreta,
e despertas os furores, os gozos,
e esta angústia
que acende o que toca
e engendra em cada coisa
uma avidez sombria.

O mundo cede e se desmancha
como metal ao fogo.
Entre minhas ruínas me ergo,
sozinho, desnudo, despojado,
sobre a rocha imensa do silêncio,
como um solitário combatente
contra invisíveis tropas.

Verdade abrasadora,
para o que me empurras?
Não quero tua verdade,
tua insensata pergunta.
Para que esta luta estéril?
Não é o homem criatura capaz de conter-se,
avidez que só na sede se sacia,
chama que a todos os lábios consome,
espírito que não vive em nenhuma forma
mas faz arder todas as formas.

Sobes desde o mais fundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Cresces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
à tua espada frenética.
Já tão somente tu me habitas,
tu, sem nome, furiosa substância,
avidez subterrânea, delirante.

Golpeiam meu peito teus fantasmas,
despertas para meu tato,
gelas minha testa,
abres meus olhos.

Percebo o mundo e te toco,
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.

Nublam meus olhos imagens opostas,
e as mesmas imagens
outras, mais profundas, negam-nas,
ardente balbucio,
águas que afoga uma água mais oculta e densa.
Em sua úmida treva vida e morte,
quietude e movimento, são o mesmo.

Insiste, vencedora,
porque existo tão somente porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer tão somente tua existência
e tuas secretas sílabas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.

És tão somente um sonho,
porém em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com tuas palavras.
Ao tocar teu peito roço
a elétrica fronteira da vida,
a treva de sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ávida ainda por destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a si mesmo,
porque não se detém em nenhuma forma
nem se demora sobre o que engendra.

Leva-me, solitária,
leva-me entre os sonhos,
leva-me, mãe minha,
desperta-me do todo,
me faz sonhar teu sonho,
unta meus olhos com azeite,
para que ao conhecer-te me conheça.


PEDRA NATIVA

A Roger Munier

A luz devasta as alturas
Manadas de impérios em derrota
O olho retrocede cercado de reflexos

Países vastos como a insônia
Pedregais de osso

Outono sem confins
Ergue a sede seus invisíveis fornecedores
Um último peru predica no deserto

Fecha os olhos e ouve cantar a luz:
O meio-dia anima em teu tímpano

Fecha os olhos e abre-os:
Não há ninguém nem sequer tu mesmo
O que não é pedra é luz

Como as pedras do Princípio
Como o princípio da Pedra
Como ao Princípio pedra contra pedra
Os fastos da noite:
O poema ainda sem rosto
O bosque ainda sem árvores
Os cantos ainda sem nome
Mas logo a luz irrompe com passos de leopardo
E a palavra se ergue ondula cai
E é uma larga ferida e um silêncio sem mácula
A alegria madura como um fruto
O fruto madura até ser sol
O sol madura até ser homem
O homem madura até ser astro
Nunca a luz se repartiu em tantas luzes
As árvores as ruas as montanhas
Se desdobram em ondas transparentes
Uma jovem ri na entrada do dia
É uma pluma ardendo o canto do canário
A música mostra seus braços desnudos
Seu dorso desnudo seu pensamento desnudo
No calor se aguça o instante venturoso
Água terra e sol são um só corpo
A hora e seu sino se dissolvem
As pedras as paisagens se evaporam
Todos se foram sem virar o rosto
Os amigos as belas à margem da vertigem
Zarpam as casas a igreja os bondes
O mundo empreende o voo
Também meu corpo se me escapa
E por entre as claridades se perde
O sol a tudo cobre a tudo vê
E em seu olhar fixo nos banhamos
E em sua pupila largamente nos queimamos
E nos abismos de sua luz caímos
Música precipitada
E ardemos e não deixamos marca


PEDRA DE SOL

La treizième revient… c’est encor la première;
et c’est toujours la seule – ou c’est le seul moment;
car es-tu reine, ô toi, la première ou dernière?
es-tu roi, toi le seul ou le dernier amant?

GÉRARD DE NERVAL, Arthémis.

Um salgueiro de cristal, um choupo de água,
um alto repuxo que o vento arqueja,
uma árvore bem plantada mas dançante,
um caminhar de rio que se curva,
avança, retrocede, dá um rodeio
e chega sempre:
um caminhar tranquilo
de estrela e primavera sem pressa,
água que com as pálpebras fechadas
brota profecias por toda a noite,
unânime presença em marejada,
onda após onda até cobrir tudo,
verde soberania sem ocaso
como o deslumbramento das asas
quando se abrem na metade do céu,

um caminhar por entre as espessuras
dos dias futuros e o aziago
fulgor da desventura como uma ave
petrificando o bosque com seu canto
e as felicidades iminentes
entre os ramos que se desvanecem,
horas de luz que bicam então os pássaros,
presságios que escapam da mão,

uma presença como um canto súbito,
como o vento cantando no incêndio,
um olhar que sustenta no ar
o mundo com seus mares e montanhas,
corpo de luz filtrada por uma ágata,
pernas de luz, ventre de luz, baías,
rocha solar, corpo da cor de nuvem,
da cor de dia rápido que salta,
a hora cintila e tem corpo,
o mundo já é visível por teu corpo,
é transparente por tua transparência,

vou por entre galerias de sons,
fluo por entre as presenças ressonantes,
vou pelas transparências como um cego,
um reflexo me apaga, nasço em outro,
oh bosque de pilares encantados,
sob os arcos da luz penetro
os corredores de um outono diáfano,

vou por teu corpo como pelo mundo,
teu ventre é uma praça ensolarada,
teus seios duas igrejas onde celebra
o sangue seus mistérios paralelos,
meus olhares te cobrem como hera,
és uma cidade que o mar assedia,
uma muralha que a luz divide
em duas metades da cor de pêssego,
uma paragem de sal, rochas e pássaros
sob a lei do absorto meio-dia,

vestida da cor de meus desejos
como meu pensamento vais desnuda,
vou por teus olhos como pela água,
os tigres bebem sonho nesses olhos,
o colibri se queima nessas chamas,
vou por tua fronte como pela lua,
como a nuvem por teu pensamento,
vou por teu ventre como por teus sonhos,

tua saia de milho ondula e canta,
tua saia de cristal, tua saia de água,
teus lábios, teus cabelos, teus olhares,
a noite toda choves, o dia todo
abres meu peito com teus dedos de água,
fechas meus olhos com tua boca de água,
sobre meus ossos choves, em meu peito
afunda raízes de água uma árvore líquida,

vou por teu talho como por um rio,
vou por teu corpo como por um bosque,
como por uma trilha na montanha
que termina em um brusco abismo,
vou por teus pensamentos afiados
e à saída de tua branca fronte
minha sombra despenhada se destroça,
recolho um a um meus fragmentos
e prossigo sem corpo, busco às tontas,

corredores sem fim da memória,
portas abertas a um salão vazio
onde apodrecem todos os verões,
as joias da sede ardem ao fundo,
rosto desvanecido ao recordá-lo,
mão que se desfaz se a toco,
cabeleiras de aranhas em tumulto
sobre sorrisos de há muitos anos,
à saída de minha fronte busco,
busco sem encontrar, busco um instante,
um rosto de relâmpago e tormenta
correndo por entre as árvores noturnas,
rosto de chuva em um jardim às escuras,
água tenaz que flui em meu dorso,

busco sem encontrar, escrevo a sós,
não há ninguém, cai o dia, cai o ano,
caio com o instante, caio a fundo,
invisível caminho sobre espelhos
que repetem minha imagem destroçada,
piso dias, instantes caminhados,
piso os pensamentos de minha sombra,
piso minha sombra em busca de um instante,

busco uma data viva como um pássaro,
busco o sol das cinco da tarde
amornado pelos muros de tezontle:
a hora madurava seus racimos
e ao abrir-se saíam as jovens
de sua entranha rosada e se espelhavam
pelos pátios de pedra do colégio,
alta como o outono caminhava
envolta pela luz sob a arcada
e o espaço ao cingi-la a vestia
de uma pele mais dourada e transparente,

tigre cor de luz, pardo veado
pelos arredores da noite,
entrevista jovem reclinada
nas sacadas verdes da chuva,
adolescente rosto inumerável,
esqueci teu nome, Melusina,
Laura, Isabel, Perséfone, Maria,
tens todos os rostos e nenhum,
és todas as horas e nenhuma,
te pareces com a árvore e com a nuvem,
és todos os pássaros e um astro,
te pareces com o fio da espada
e com a taça de sangue do verdugo,
hora que avança, envolve e desenraiza
a alma e a divide de si mesma,

escritura de fogo sobre o jade,
greta na rocha, rainha de serpentes,
coluna de vapor, fonte na fraga,
circo lunar, penhasco das águias,
grão de anis, espinho diminuto
e mortal que dá penas imortais,
pastora dos vales submarinos
e guardiã do vale dos mortos,
liana que pende do cantil da vertigem,
trepadeira, planta venenosa,
flor de ressurreição, uva de vida,
senhora da flauta e do relâmpago,
terraço do jasmim, sal na ferida,
ramo de rosas para o fuzilado,
neve em agosto, lua do patíbulo,
escritura do mar sobre o basalto,
escritura do vento no deserto,
testamento do sol, romã, espiga,

rosto de chamas, rosto devorado,
adolescente rosto perseguido
anos fantasmas, dias circulares
que dão no mesmo pátio, no mesmo muro,
arde o instante e são um só rosto
os sucessivos rostos da chama,
todos os nomes são um só nome,
todos os rostos são um só rosto,
todos os séculos são um só instante
e por todos os séculos dos séculos
fecha caminho ao futuro um par de olhos,

não há nada frente a mim, só um instante
resgatado esta noite, contra um sonho
de reunidas imagens sonhado,
duramente esculpido contra o sonho,
arrancado ao nada desta noite,
a pulso erguido letra a letra,
enquanto lá fora o tempo se desboca
e golpeia as portas de minha alma
o mundo com seu horário carniceiro,

só um instante enquanto as cidades,
os nomes, os sabores, o vivido,
se desmoronam em minha fronte cega,
enquanto o pesadelo da noite
humilha meu pensamento e meu esqueleto,
e meu sangue caminha mais lentamente
e meus dentes se afrouxam e meus olhos
se nublam e os dias e os anos
seus horrores vazios acumulam,

enquanto o tempo fecha seu leque
e não há nada detrás de suas imagens
o instante se abisma e sobrenada
rodeado de morte, ameaçado
pela noite e seu lúgubre bocejo,
ameaçado pela algaravia
da morte vivaz e encoberta
o instante se abisma e se penetra,
como um punho se fecha, como uma fruta
que madura para dentro de si mesma
e bebe a si própria e se derrama
o instante translúcido se fecha
e madura para dentro, deita raízes,
cresce dentro de mim, me ocupa todo,
me expulsa sua folhagem delirante,
meus pensamentos são só seus pássaros,
seu mercúrio circula por minhas veias,
árvore mental, frutos sabor de tempo,

oh vida por viver e já vivida,
tempo que retorna em uma marejada
e se retira sem virar o rosto,
o que passou não foi mais está sendo
e silenciosamente desemboca
em outro instante que se desvanece:

frente à tarde de salitre e pedra
armada de navalhas invisíveis
uma vermelha escritura indecifrável
escreves em minha pele e essas feridas
como um traje de chamas me recobrem,
ardo sem consumir-me, busco a água,
e em teus olhos não há água, são de pedra,
e teus seios, teu ventre, tuas ancas
são de pedra, tua boca tem sabor de pó,
tua boca tem sabor de tempo envenenado,
teu corpo tem sabor de poço sem saída,
passagem de espelhos que repetem
os olhos do sedento, passagem
que volta sempre ao ponto de partida,
e me levas cego pela mão
por essas galerias obstinadas
até o centro do círculo e te ergues
como um fulgor que se congela em tocha,
como luz que esfola, fascinante
como o cadafalso para o condenado,
flexível como o látego e esbelta
como uma arma gêmea da lua,
e tuas palavras afiadas cavam
meu peito e me despovoam e esvaziam,
as lembranças uma a uma me arrancas,
esqueci meu nome, meus amigos
grunhem entre os porcos e apodrecem
comidos pelo sol em um barranco,

não há nada em mim senão uma larga ferida,
um vazio que já ninguém percorre,
presente sem janelas, pensamento
que volta, se repete, se reflete
e se perde em sua própria transparência,
consciência transpassada por um olho
que se vê se vendo até inundar-se
de claridade:
eu vi tua atroz escama,
Melusina, brilhar esverdeada na alvorada,
dormias enroscada entre os lençóis
e ao despertar gritastes como um pássaro
e caíste sem fim, quebrada e branca,
nada ficou de ti senão teu grito,
e ao cabo dos séculos me descubro
com tosse e miopia, embaralhando
velhas fotos:
não há ninguém, não és ninguém,
um monte de cinzas e uma vassoura,
uma faca cega e um espanador,
um couro pendido de uns ossos,
um racimo já seco, uma negra cova
e no fundo da cova os dois olhos
de uma menina afogada há mil anos,

olhares enterrados em um poço,
olhares que nos veem desde o princípio,
olhar criança da velha mãe
que vê no filho grande um pai jovem,
olhar mãe da criança sozinha
que vê no pai grande um filho criança,
olhares que nos olhos do fundo
da vida e são ardis da morte
— ou é o contrário: cair nesses olhos
é retornar à verdadeira vida?,

cair, voltar, sonhar-me e que me sonhem
outros olhos futuros, outra vida,
outras nuvens, morrer de outra morte!
— esta noite me basta, e este instante
que não acaba de abrir-se e revelar-me
onde estive, quem fui, como te chamas,
como me chamo eu:
fazia planos
para o verão – e todos os verões –
em Christopher Street, há dez anos,
com Fílis que tinha duas covinhas
onde bebiam luz os pardais?,
pela Reforma Carmem me dizia
“não pesa o ar, aqui sempre é outubro”,
ou o disse para outro que perdi
ou eu o invento e ninguém me disse?,
caminhei pela noite de Oaxaca,
imensa e verdenegra como uma árvore,
falando sozinha como o vento louco
e ao chegar em meu quarto – sempre um quarto –
não me reconheceram os espelhos?,
do hotel Vernet vimos a alvorada
bailar com os castanheiros – “já é muito tarde”
dizias ao te pentear e eu via
manchas na parede, sem dizer nada?,
subimos juntos à torre, vimos
cair a tarde do recife?,
comemos uvas em Bidart?, compramos
gardênias em Perote?,
nomes, lugares,
ruas e ruas, rostos, praças, ruas,
estações, um parque, quartos solitários,
manchas na parede, alguém se penteia,
alguém canta ao meu lado, alguém se veste,
quartos, lugares, ruas, nomes, quartos,

Madrid, 1937,
na Plaza del Ángel as mulheres
costuravam e cantavam com seus filhos,
depois soou o alarme e houve gritos,
casas ajoelhadas no pó,
torres fendidas, fachadas esculpidas
e o furacão dos motores, fixo:
os dois se despiram e se amaram
por defender nossa porção eterna,
nossa ração de tempo e paraíso,
tocar nossa raiz e nos recobrar,
recobrar nossa herança arrebatada
por ladrões de vida há mil séculos,
os dois se despiram e se beijaram
porque as nudezes enlaçadas
saltam o tempo e não invulneráveis,
nada as toca, voltam ao princípio,
não há tu nem eu, amanhã, ontem nem nomes,
verdade de dois em um só corpo e alma,
oh ser total…
quartos à deriva
entre cidades que vão a pique,
quartos e ruas, nomes como feridas,
o quarto com janelas para outros quartos
com o mesmo papel descolorido
onde um homem em camisa lê um jornal
ou uma mulher engoma; o quarto claro
que visitam os ramos do pessegueiro;
o outro quarto: lá fora sempre chove
e há um pátio e três crianças oxidadas;
quartos que são navios que se movem
em um golfo de luz; ou submarinos:
o silêncio se espalha em ondas verdes,
tudo o que tocamos fosforesce;
mausoléus do luxo, já roídos
os retratos, raspados os tapetes;
armadilhas, celas, cavernas encantadas,
aviários e quartos numerados,
todos se transfiguram, todos voam,
cada moldura é nuvem, cada porta
dá no mar, no campo, no ar, cada mesa
é um festim; fechados como conchas
o tempo inutilmente os assedia,
já não há tempo, nem muro: espaço, espaço,
abre a mão, colhe esta riqueza,
corta os frutos, come da vida,
estende-te ao pé da árvore, bebe a água!,

tudo se transfigura e é sagrado,
cada quarto é o centro do mundo,
é a primeira noite, o primeiro dia,
o mundo nasce quando dois se beijam,
gota de luz de transparentes entranhas
como um fruto o quarto se entreabre
ou estala como um astro taciturno
e as leis comidas por ratazanas,
as grades dos bancos e os cárceres,
as grades de papel, os alambrados,
os timbres e as puas e os agulhões,
o sermão monocórdio das armas,
o escorpião meloso e com boné,
o tigre com cartola, presidente
do Clube Vegetariano e da Cruz Vermelha,
o burro pedagogo, o crocodilo
metido a redentor, padre de aldeias,
o Chefe, o tubarão, o arquiteto
do porvir, o porco uniformizado,
o filho predileto da Igreja
que lava a negra dentadura
com a água benta e toma aulas
de inglês e democracia, as paredes
invisíveis, as máscaras apodrecidas
que dividem o homem dos homens,
o homem de si mesmo,
caem
por um instante imenso e vislumbramos
nossa unidade perdida, o desamparo
que é ser homens, a glória que é ser homens
e compartilhar o pão, o sol, a morte,
o esquecido assombro de estarmos vivos;

amar é combater, se dois se beijam
o mundo se modifica, encarnam os desejos,
o pensamento encarna, brotam asas
nas costas do escravo, o mundo
é real e tangível, o vinho é vinho,
o pão torna a saber, a água é água,
amar é combater, é abrir portas,
deixar de ser fantasma com um número
condenado à prisão perpétua
por um amo sem rosto;
o mundo se modifica
se dois se olham e se reconhecem,
amar é desnudar-se dos nomes:
“deixa-me ser tua puta”, são palavras
de Eloísa, mas ele cedeu às leis,
tomou-a por esposa e como prêmio
castraram-no depois; melhor o crime,
os amantes suicidas, o incesto
dos irmãos como dois espelhos
enamorados de sua semelhança,
melhor comer o pão envenenado,
o adultério em leitos de cinzas,
os amores ferozes, o delírio,
sua hera peçonhenta, o sodomita
que leva por cravo na lapela
um gargalho, melhor ser lapidado
nas praças que arrodear o poço
que exprime a substância da vida,
muda a eternidade em horas ocas,
os minutos em cárceres, o tempo
em moedas de cobre e merda abstrata;

melhor a castidade, flor invisível
que se move nos talhos do silêncio,
o difícil diamante dos santos
que filtra os desejos, sacia o tempo,
núpcias da quietude e do movimento,
canta a solidão em sua corola,
pétala de cristal é cada hora,
o mundo se despoja de suas máscaras
e em seu centro, vibrante transparência,
o que chamamos Deus, o ser sem nome,
se contempla no nada, o ser sem rosto
emerge de si mesmo, sol de sóis,
plenitude de presenças e de nomes;

sigo meu desvario, quartos, ruas
caminho às tontas pelos corredores
do tempo e subo e desço seus degraus
e apalpo suas paredes e não me movo,
retorno aonde comecei, busco teu rosto,
caminho pelas ruas de mim mesmo
sob um sol sem idade, e ao meu lado
caminhas como uma árvore, como um rio
caminhas e me falas como um rio,
cresces como uma espiga entre minhas mãos,
palpitas como um esquilo entre minhas mãos,
voas como mil pássaros, teu riso
me cobriu de espumas, tua cabeça
é um astro pequeno entre minhas mãos,
o mundo reverdece se sorris
comendo uma laranja,
o mundo se modifica
se dois, vertiginosos e enlaçados,
caem sobre a relva: o céu desce,
as árvores ascendem, o espaço
é somente luz e silêncio, somente espaço
aberto para a águia do olho,
passa a branca tribo das nuvens,
rompe amarras o corpo, zarpa a alma,
perdemos nossos nomes e flutuamos
à deriva entre o azul e o verde,
tempo total onde não passa nada
senão seu próprio transcorrer venturoso,

não passa nada, calas, pestanejas
(silêncio: cruzou um anjo este instante
grande como a vida de cem sóis),
não passa nada, só um pestanejo?
– e o festim, o desterro, o primeiro crime,
a queijada do asno, o ruído opaco
e o olhar incrédulo do morto
ao cair na planície cinzenta,
Agamenon e seu mugido imenso
e o repetido grito de Cassandra
mais forte que os gritos das ondas,
Sócrates em cadeias (o sol nasce,
morrer é despertar: “Critón, um galo
para esculápio, já são da vida”),
o chacal que disserta entre as ruínas
de Nínive, a sombra que viu Bruto
antes da batalha, Montezuma
no leito de espinhos de sua insônia,
a viagem na carroça até a morte
— a viagem interminável mas contada
minuto após minuto por Robespierre,
a mandíbula rota entre as mãos –,
Churruca em sua barrica como um trono
escarlate, os passos já contados
de Lincoln ao sair para o teatro,
o estertor de Trotski e seus queixumes
de javali, Madero e seu olhar
que ninguém contestou: por que me matam?,
os caralhos, os ais, os silêncios
do criminoso, do santo, do pobre diabo,
cemitérios de frases de anedotas
que os cães retóricos escarvam,
o delírio, o relincho, o ruído obscuro
que fazemos ao morrer e esse arquejo
da vida que nasce e o som
de ossos esmagados na briga
e a boca de espuma do profeta
e seu grito e o grito do verdugo
e o grito da vítima…
são chamas
os olhos e são chamas o que veem,
chama a orelha e chama o som,
brasa os lábios e tição a língua,
o tato e o que toca, o pensamento
e o pensado, chama o que o pensa,
tudo se queima, o universo é chama,
arde o mesmo nada que não é nada
senão um pensar em chamas, fumaça ao final:
não há verdugo nem vítima…
e o grito
na tarde de sexta?, e o silêncio
que se cobre de signos, o silêncio
que diz sem dizer, não diz nada?,
não são nada os gritos dos homens?,
não passa nada quando passa o tempo?

— não passa nada, somente um pestanejo
do sol, um movimento apenas, nada,
não há redenção, o tempo não volta atrás,
os mortos estão fixos em sua morte
e não modem morrer de outra morte,
intocáveis, cravados em seu gesto,
desde sua solidão, desde sua morte
sem remédio nos olham sem nos mirar,
sua morte já é a estátua de sua vida,
um sempre já estar nada para sempre,
cada minuto é nada para sempre,
um rei fantasma rege tuas pulsações
e teu gesto final, tua dura máscara
lavra sobre teu rosto mutante:
somos o monumento de uma vida
alheia e não vivida, apenas nossa,

— a vida, quando foi deveras nossa?,
quando somos deveras o que somos?,
bem-visto não somos, nunca somos
a sós senão vertigem e vazio,
esgares no espelho, horror e vômito,
nunca a vida é nossa, é dos outros,
a vida não é de ninguém, todos somos
a vida – pão de sol para os outros,
os outros todos que nós somos –,
sou outro quando sou, os meus atos
são mais meus se são também de todos,
para que possa ser tenho de ser outro,
sair de mim, buscar-me entre os outros,
os outros que não são se não existo,
os outros que me dão plena existência,
não sou, não há eu, sempre somos nós,
a vida é outra, sempre além, mais longe,
fora de ti, de mim, sempre horizonte,
vida que nos desvive e aliena,
que nos inventa um rosto e o desgasta,
fome de ser, oh morte, pão de todos,

Eloísa, Perséfone, Maria,
mostra finalmente teu rosto para que veja
minha verdadeira cara, a do outro,
minha cara de nós sempre todos,
cara de árvore e de padeiro,
de motorista e de nuvem e de marinheiro,
cara de sol e arroio e Pedro e Paulo,
cara de solitário coletivo,
desperta-me, já nasço:
vida e morte
pactuam em ti, senhora da noite,
torre de claridade, rainha da alvorada,
virgem lunar, mãe da água mãe,
corpo do mundo, casa da morte,
caio sem fim desde meu nascimento,
caio em mim mesmo sem tocar meu fundo,
recolhe-me em teus olhos, junta o pó
disperso e reconcilia minhas cinzas,
ata meus ossos divididos, sopra
sobre meu ser, enterra-me em tua terra,
teu silêncio dê paz ao pensamento
contra si mesmo irado;
abre a mão,
senhora de sementes que são dias,
o dia é imortal, ascende, cresce,
acaba de nascer e nunca acaba,
cada dia é nascer, um nascimento
é cada amanhecer e eu amanheço,
amanhecemos todos, amanhece
o sol cara de sol, João amanhece
com sua cara de João cara de todos,

porta do ser, desperta-me, amanhece,
deixa-me ver o rosto deste dia,
deixa-me ver o rosto desta noite,
tudo se comunica e transfigura,
arco de sangue, ponte de latejos,
leva-me ao outro lado desta noite,
aonde eu sou tu somos nós,
ao reino de pronomes enlaçados,

porta do ser: abre teu ser, desperta,
aprende a ser também, lavra tua cara,
trabalha tuas facções, tem um rosto
para ver meu rosto e que te veja,
para ver a vida até a morte,
rosto de mar, de pão, de rocha e fonte,
manancial que dissolve nossos rostos
no rosto sem nome, o ser sem rosto,
indizível presença de presenças…

quero seguir, ir mais além, e não posso:
o instante se despenhou em outro e outro,
dormi sonhos de pedra que não sonha
e ao cabo dos anos ouvi cantar
como pedras meu sangue encarcerado,
com um rumor de luz cantava o mar,
uma a uma cediam as muralhas,
todas as portas desmoronavam
e o sol saqueava por minha frente,
despregava minhas pálpebras fechadas,
desprendia meu ser de sua envoltura,
me arrancava de mim, me separava
de meu bruto dormir séculos de pedra
e sua magia de espelhos revivia
um salgueiro de cristal, um choupo de água,
um alto repuxo que o vento arqueja,
uma árvore bem plantada mas dançante,
um caminhar de rio que se curva,
avança, retrocede, dá um rodeio
e chega sempre:

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