3 Poemas de Eliseo Diego (Cuba, 1920-1994)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils

Esta é então nossa herança: uma cortejada grandeza, um disfrutado papetismo, uma sublime comédia que chamamos história; porém nós não vimos antes, nem poderemos ver nunca, o esplendor inocente, a galhofa sagrada, a profunda quietude de nosso rosto verdadeiro. Quanto sabemos é que estamos no “grande teatro do mundo” e que dele não podemos sair; que a glória de nossas mais altas tragédias não é mais do que a glória de nossas próprias ficções. O que não daríamos para saltar uma única vez do cenário ao limite simples do real e finalmente tocar uma pedra de Deus, não um pedaço da decoração, mesmo que nos abrisse as mãos como uma brasa! Porém isto é impossível: isto vai de encontro à própria lei da cena. Imaginemos então que estamos na sala escura de um teatro, em meio a uma representação e que, de imediato, um dos personagens – atentemos bem: um dos personagens – se volta e olha em nossos olhos. Este espanto é possível? Não, nunca. Porque o personagem pertence a seu ser e à sua aventura e está real e definitivamente cego.

Porém se estamos afogados de sonhos, se não sabemos sequer o que perdemos, sabemos ao menos o que nos resta. Nos restam os dons. Com eles nos lançaram ao pó: não a tragédia, que é mentira nossa, mas sim o poder de criá-la; não as imagens, mas sim o olhar. Quanto no homem é nobre e justo é despojo de sua inocência perdida.

[…]

Um poema, dizemos, não termina senão com sua encarnação em palavras. E qual é o sentido da encarnação por excelência, da Encarnação do Cristo, se não o de um sacrifício? No mundo sombrio da Queda o ato poético é imperfeito sem um ato de expiação, sem o ato de suprema caridade ou renúncia que é a encarnação. Através da encarnação podem os outros participarem da visão original, que somente se justifica por esta participação, e assim a perfeita leitura é essencial à criação do objeto. A idolatria literária, ao ver um poema como o fulgor de um pequeno deus que se adora, é, portanto, uma infeliz impureza. Deveríamos ler com a mesma dura inconsciência, com a mesma ingratidão com que brinca uma criança, tornando nosso o que é simplesmente nosso, já que sem a expiação pela escritura nada haveria. Somente uns poucos e limpos inocentes podem ver em silêncio os prodígios.

[…]

Recordemos a tempo o pausado aviso do doutor Johnson: é mais fácil dizer o que não é a poesia, e fiquemos somente com a serena vastidão da selva de Anderida, ou com o estreito pavor do bosque Ciminiano, por onde apenas se atreviam as legiões, ou com a impassível obstinação das relvas iniciando o crescimento do silêncio nem bem se apaga o leve rumor do homem. Treva da divindade, penumbra das criaturas, e nossos sonhos como fogos fátuos ardendo na intempérie.

ELISEO DIEGO / “Esta tarde nos hemos reunido”, conferência pronunciada no Lycéum. La Habana. 1959.


A CASA DE CAMPO

Houve uma época meus pais minaram o tédio voraz da cor branca
fazendo uso de gárgulas lunáticas que esbanjavam por diversão a escuridão,
e aqueles hipogrifos de concreto que alcançaram à força da paciência consagradora pátina
calados conseguiram dissimular suas piadas e espalhar a penumbra com um vago terror noite adentro.
Mais importante ainda era o menino negro que se divertia tanto com nada
sentado nas escadas que sempre fingiam ser cachoeiras
e quem acompanhava não sei se era para seu prazer o silencioso gato sobre o tapume intenso, contra a tarde vermelha, enigma pobre, comovente o que será do meu bairro.
As cavernas japonesas, raras e profundas com a profundidade de uma noite pintada em uma tábua,
e aquelas fontes cegas, e os fossos fundos pelas perfumadas tardes passeadas.
Escrevo tudo isso com a melancolia de quem escreve um documento.
Como quem vê a ruína, a intempérie funesta contemplando o puído interior do grego.
Digo como deviam ser o ócio tão suave e o passo régio e a ternura graciosa do passeio
quando voltavam para casa lentamente pelas águas limpas da fonte, observados pelas criaturas extáticas do parque,
quando a noite nem sempre começava no anoitecer, mas era também a escuridão lustrosa do inútil canto
minando o tédio da cal, o horror da parede como um vazio deslumbrante.
Aquele negrinho, aqueles hipogrifos que gostavam magistralmente da chuva
saboreando as gotas e a cor cinzenta como se o frio realmente fizesse parte de suas almas,
e o nome da casa, que as afiadas trepadeiras trançavam com variadas flores de reluzente ferro,
os governados riachos de pedra por onde navegavam os bergantins dourados das folhas
sem conhecer o pequeno e delicioso tamanho de sua aventura nem o agradável esquecimento daquele sombrio porto,
o jardim da casa onde termina o Caminho e começa o nascimento silencioso do campo e da noite,
gasto pelo sol olho-o, melancolicamente desolado como o feio pensamento de um idiota.
Digo essas coisas com a tristeza de quem sozinho diz quantos anos
e deixa cair a inútil mão na frescura do vime e em seu conforto encontra algum consolo.


HORA DA SESTA


Assurbanipal em seu palácio
está lendo um livro de aventura
enquanto desenha no ar
um falcão seu círculo de gritos
e o tempo passa, com a guarda, lá fora.

Sente Assurbanipal que alguém está observando,
então vira a cabeça, o sol corta-o
em dois a barba, em dois também o manto
e em dois o livro de aventuras enquanto
Nínive troveja, com o tempo, lá fora.

Mas antes de olhar para quem está observando-o
devem passar os dias daquele ano,
os anos de sua vida mais as vidas
de Ciro e Alexandre e Empédocles e Cristo
e o tempo com as nuvens, com pressa, lá fora.

No fundo do jardim os leões
em laranja perpetuam seu bocejo:
os azulejos ainda estão tão nus,
tão régios, tão assírios como sempre,
antecipando o tempo e o deserto lá fora.

Assurbanipal não viu quem o observava
de um enxame de ilhas incriadas
e em uma identidade de sol e tédio.
Tremendo volta ao seu livro de aventuras
enquanto o tempo, cauteloso, escurece lá fora.


TRANSFIGURAÇÃO

Aqueles comediantes horríveis
que foram escândalo da alma,
que estranho isso,
                de repente,
já não são mais que nostalgia!

Como seus truques grosseiros, toscos,
suas pobres piadas deploráveis,
tornam-se leves,
            trêmulas,
como uma luz ao longe!

 

 

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