3 Poemas de Humberto Díaz-Casanueva (Chile, 1907-1992)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Creio que o problema geracional – de cuja importância não prescindo – pode nos levar a classificações arbitrárias, a confundir o contemporâneo com o geracional e a superestimar o cronológico no surgimento ou na terminação de um grupo de poetas no tempo ou no espaço. Outros já dão importância ao fator geográfico: poetas do sul, do norte. O pior é que a perspectiva geracional leva implícita a ideia de que existe um progresso nas artes e na literatura, em linha reta, e que cada geração é uma etapa que supera a anterior, tem que rebelar-se contra esta e apresentar algo fresco, novo. Com isto não quero dizer que, em determinada circunstância histórica, se apresente uma coincidência entre a contemporaneidade e o impulso revolucionário geracional que anima um grupo de criadores. A violenta ruptura que faz a “modernidade” (emprego este termo de forma interina) abarca várias gerações e zonas do mundo e ela não correu perigo, mesmo que tenha sido decretada sua morte uma e outra vez (se fala de pós-modernidade). Claro que sofre metamorfoses e se ramifica. Não surgiu outro movimento que realmente supere a modernidade (superar a vanguarda é possível). O que surge é uma série de “anti”, “pós”, “neo”, “super”, “hiper” etc., mas sempre se toma a modernidade como ponto de referência: se reconhece que sobrevive. Compreendo que os jovens sejam parricidas e busquem a todo custo uma ruptura que os justifique. Compreendo, por exemplo, que depois de uma poesia esotérica, onírica, trágica, recarregada de símbolos, sobrevenha outra mais direta, simples, fácil, com uma linguagem distinta.

Porém vamos todos em um mesmo trem, talvez em diversos vagões; o trem inteiro pode descarrilar um dia e assim sucederá… Gostaria de afirmar o seguinte: o Rimbaud que aos seus 19 anos era o primeiro poeta da França, nascido em 1854, não tem para mim 131 anos; me aparece, com suas mechas revoltas, sempre com 19 anos e me brinda novas riquezas e me dá novas lições e está mais atual que muitos dos grandes das gerações que lhe sucederam. Neruda teria sido outro se houvesse nascido em 1980? Talvez. Ortega y Gasset, um pensador máximo sobre a matéria, define a geração como um movimento histórico-sociológico com seu estilo de vida próprio; ou seja, um poeta jovem se encontra submerso em uma circunstância precisa, obrigado a nutrir-se ou insubordinar-se contra valores e crenças em voga. Um caso muito interessante é o poeta “antagônico” que luta contra a corrente. Neruda era “cabeça de geração” e ele o sabia; Huidobro queria ser “cabeça de um movimento”; porém seus discípulos não foram criacionistas e sim surrealistas… de Rokha e del Valle não formaram capelas. Se esgotam ou se degeneram as gerações ou desaparecem porque morrem seus protagonistas? Fernando Alegría diz que sou o “estertor brilhante” de uma geração. Quando acordo deprimido acentuo “estertor”, porém nunca desperto tão jovial a ponto de aceitar o adjetivo…

[…]

Valorizo cada vez mais o surrealismo em aspectos não inteiramente desvelados e que poderiam parecer periféricos, já que sempre se há sustentado que o surrealismo é, primordialmente, imagem: “o encontro de duas realidades, as mais distantes que sejam possíveis”. É a consequência levada a seu extremo da concepção analógica da realidade, um dos pilares da poesia moderna desde Baudelaire. Não ponho em dúvida que os surrealistas chegam a portentosos achados. De tudo isto me atrai o alucinatório, o fantástico, a “beleza convulsiva”. Para mim, não obstante, a poesia não é uma colagem de imagens, ainda que, no que me diz respeito, eu abuse delas em uma frondosidade barroca. Breton diz que o valor de uma imagem depende do relâmpago que se obtenha. Porém o caráter “automático” da imagem surrealista não se concilia com meu afã de coligar o fundo mais tenebroso, irracional e incoerente e a lucidez mais implacável juntamente com a emissão de sentido. Me convencem, naturalmente, as fontes do insólito e o “acaso objetivo”. Quis traçar um caminho que vai da metáfora à imagem visionária e, em seguida, ao símbolo. Éluard disse: “ela mostra seios que matam insetos vermelhos…”; é belo, ainda que um pouco artificioso, lirismo de uma percepção visual imaginada. John Ashbery disse: “O jovem coloca um aviário contra o mar azul / homens aparecem, porém eles vivem em caixas / há choques comunicativos na praia”. Aqui há maior emotividade, sugestão, intensidade culminante, beleza perturbadora. Definitivamente, minha poesia seguiu um curso simbólico muito agudo, por conseguinte o âmbito visionário que consigo criar (isto já me foi reconhecido) e o verbo que em seu desconjuntamento produz significação. Ao menos esta tem sido minha ambição: obtive um mínimo, sempre estou assaltado por dúvidas e inseguranças, rompo muito, me vem um grande abatimento e derrota. Nunca me leio, porém às vezes me surpreendo quando folheio alguns de meus livros; me pergunto: como pode haver brotado de mim este ou aquele verso. O símbolo, em comparação com a imagem, tem mais qualidade imaginativa, emoção, magia verbal. Algo, o inefável, se revela melhor através do símbolo do que na expressão direta ou no símile. Absurdo seria, contudo, estimar que a imaginação simbólica está desligada do real corrente. Em minha poesia sempre aparecem pedaços crus da fala cotidiana, em contraste com planos visionários que nunca constituem fugas na fantasia. Poderia melhor invocar algo semelhante a um realismo mágico: porém, o real acaso não tem muito de irreal? É próprio da faculdade do poeta espreitar este fenômeno.

HUMBERTO DÍAZ-CASANUEVA / “Un riesgo, una fuerza, un sueño decisivo”, entrevista concedida a Blanca Espinoza. Revista Lar # 8-9. Concepcíon. Maio de 1986.


A VISÃO

Jazia escuro, as pálpebras caídas em direção ao terrível
acaso com o fim do mundo, com essas duas mãos insones
entre o vento que me atravessou com seus restos de céu.
Então eu não fazia ideia, em uma enorme brancura
meus templos foram perdidos como coroas sangradas
e meus ossos brilharam como bronzes sagrados.
Tocavas aquele pico de onde o amanhecer flui suavemente
com minhas mãos que reluziam um mar em ordem mágica.
Era o caminho mais puro e era a luz já sólida
por águas adormecidas, resvalando até as minhas origens
quebrando minha pele branca, apenas seu óleo brilhava.
Nascia meu ser matinal, talvez da terra ou do céu
que há muito esperava e cujo passo de sombra
extinguiu meu ouvido que zumbia como o ninho do vento.
Pela primeira vez fui lúcido, mas sem minha língua ou meus ecos
sem lágrimas, revelando-me noções e melodias douradas;
soltei uma pomba e ela fechava meu sangue em silêncio,
entendi que a fronte foi formada em um grande sonho
como uma crosta lenta em uma ferida que flui sem cessar.
Isso é tudo, a noite fez meus buquês secretos de braços
e talvez minhas costas já estivessem coagulando em sua própria sombra.
Voltei ao escuro, a uma larva reprimida novamente na minha fronte
e um terror fez meu coração se alegrar em claras canções.
Tenho certeza que tentei as cinzas da minha própria morte,
aquelas que dentro do sonho fazem minha mais profunda insônia.


ELEVAÇÃO DO EIXO

Talvez porque esses sonhos repetidos tirem do nada essa parte de mim que ainda não tenho,
ainda não atingi a unidade do meu ser à custa do seu próprio destino.
Minha cabeça tinha uma saída para a lama alegre, mas sonhos cruéis me decapitam.
E estremece a cera mole que inutilmente procura forma junto ao fogo.
Este é o testemunho sofrido daquele que não pode esculpir suas formas puras,
Porque o impede seu ser feito de perigos e medos cruéis.
Depois de cantar sinto que o medo é a medida mais segura da fronte,
tenho harpas crescidas, porém a cada noite me é levada a parte mais misteriosa da minha alma.
Ser meu, me consomes por teu excesso, quando vou a ti com esta minha indigência desperta.
Oh! Se descansas como aquela luz já entregue que nas mãos de um fundador se revela.
O poeta esquece sua língua materna quando cavam sob a alma!
Desesperado, apago a auréola dos santos, quero descobrir minhas próprias leis.
Talvez este espelho e suas pequenas águas mortas tenham devolvido meu rosto mais perdido,
Mas estou cansado e em pedra já sangrado os olhos caem saciados.
Vejo que o dia brota em mim apenas por causa do lodo que o sono deixa em meu corpo.
Quem então deve acalmar minhas cem estátuas que se desprendem da luz e enlouquecem?
Que escuridão quente, suspiro no meu eclipse íntimo, perco o presságio,
oh, agora meu coração seria capaz de negar sua pequena crisálida
e aquelas asas aterrorizantes que dele se aproximam surgindo do nada.


RITOS

Como no início das coisas, quando o coração há tempos não vivia nem sentia necessidade de espaços
sem o peito ou o tamanho de sua morte, antes que a corrente do medo fosse sua vida.
Com um sangue virgem, ainda sem brilho, tendo um canto para a altura de seu abismo.
Lá com grandes e terríveis lábios adivinho a chave de tantos ecos perdidos
Enquanto um vinho escuro faz saltar meus selos, me instrui de visões.
Dissolvo os olhos no meio das águas, os ouvidos como quebras de lama, fecho.
Disperso então essa sombra traiçoeira, longe do dia róseo, quando as têmporas mordem.
Dentro do sonho eu canto, movendo minha alma da direita para a esquerda.
Sonhos vorazes queimando, são minhas próprias cinzas que mantêm
essa língua branca que já rola em doces dísticos.
Enfim minha memória, sua urna aberta descubro, encontro a asa de uma besta cega,
esta é a vida que encontro, a que filtra através dos meus mártires adormecidos.
Do mundo uma raiz suga e suga, ah! a pressão mortal de duas imagens em um segundo
até que o templo ceda sem fermentar ainda
e a noite abre minha fronte para seu minério.

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