3 Poemas de Ileana Espinel (Equador, 1933-2001)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Ileana Espinel desenvolveu sua paixão vital pela escrita poética, o humor e a ironia foram inerentes ao seu estilo, o que lhe conferia linguagem e expressividade mais contundentes. Faz parte da antologia Poesía soy yo. Poetas em espanhol do século XX, das poetas espanholas Raquel Lanceros e Ana Merino. Lá dividiu lugar com poetas como: Gabriela Mistral, Juana de Ibarbourou, Julia de Burgos e oitenta e dois outros poetas. Ela foi reconhecida internacionalmente como uma das maiores vozes líricas da poesia equatoriana do século XX.

Em sua obra encontramos críticas sociais e políticas como se seus versos fossem uma janela pela qual novos leitores pudessem apreciar a vida da época. Do assassinato de uma mulher indígena na frente de seus três filhos por tentar levar uma jarra d’água sem permissão (narrado em seu poema “María Juana Pinto”), a um questionamento severo do governo Mahuad (“A democracia inútil”) ou em seu poema “Visão do subúrbio” onde se evidencia a pobreza, o engano dos políticos e outras arestas da realidade sociopolítica.

SIGRIT DELGADO


BALANÇO MORTAL

Alma e carne gemendo
um féretro esperando
às vezes sem almoço outras vezes sem jantar
para honra da glândula que engorda meus ossos
três litros por dia de água de boldo para o mal
isso detém meus passos
que semeia minha antológica minha pele macia de neve
de rosas verdes lívidas
a nostalgia a tonta azul negra divina
deixando com orgulho suas belas nádegas
em um tataravô sofá de três pernas
os dez anos que gelam os ossos de meu pai
escapando em uma época de morcegos atrofiados
a doce e pura santa que me pariu tremendo
abraçada a seu pequeno Cristo de pau
esta agitação grave, sardônica e implacável
que afunda aqui que às vezes
dá piruetas e sorri
desdenhando seu voo de cinzentas aves mortas
as vozes incolores da rua soando
o espelho do mar refletindo a angústia
exausta
sem remédios sem médicos sem deuses
mil séculos bocejando
e em uma caixa de cartas insípidas ou líricas
um cacho de Oscar Wilde penteando meu esquecimento.

O coração não treme
o cérebro sem lâmpadas
é povoado por infinitas mortes ambíguas.

A vida não
nem o ódio
nem o amor
nem as pessoas
apenas minha única sombra
as rosas podres
as adagas de vento
os parasitas ávidos o tempo detestável o nada
sangrando
e tudo tão completo
tão humano
tão simples
como a luz o pus e os carcomas.


UM BALANÇO DAS COISAS ADORÁVEIS

A Poesia – seu voo, suas raízes –
o universo de Amor que cria.
A democracia. Deus. A mãe. Uma criança.
O mar incontrolável e desterrado.
Teus olhos castanhos, teus braços dourados,
o fulgor de tua estátua,
meu coração despido amando-os.
César Vallejo – o profundo, o desolado –
me fazendo sangrar, sangrar, sangrar.

Infinidade de coisas que adoro – que adoráveis
meço em silêncio – como
ler um livro puro – puro de beleza fiel –,
ouvir em meus cílios o leve som do vento,
ver cair lentamente a chuva me lembrando
tempos idos – perdidos – vividos no sangue,
te escrever uma carta profundamente terna,
fumar um cigarro, suspirar com saudades tuas.

Coisas, seres, sonhos entranháveis que adoro
como as nove letras de meu porto quente,
Dostoievski, Oscar Wilde, Peter Tchaikovsky, Whitman,
Mozart, Rodin, Beethoven, Goya,
a liberdade, a liberdade, a liberdade sagrada,
o espírito, os picos, os planaltos
do meu Equador febril e seus milagres,
Medardo Ángel Silva e sua lira de estrelas
sonhando seus fulgores, sempre cantando,
os poemas de Emily Dickinson, Delmira,
Miguel Angel Osorio – azul Porfírio oceânico –,
o tempo Rosacruz, Charlot, Sophia Loren,
as flores, Baudelaire, Rimbaud, Sapho,
o Evangelho de São João, a adaga de Alfonsina
e o fogo de Fausto entre os templos.

Seres puros, rebeldes, desnudamente humanos:
Simón Bolívar libertando povoados,
Don Alonso Quijano na quimera,
Jesus – a alma da Luz – reinando,
possivelmente eu caso me amasses.


VISÃO DO SUBÚRBIO

As pedras lunares e cinzentas do Subúrbio
são belas com uma beleza de tristeza.
Mas não há glamour aí. Nem avenidas sujas.
Nem ruas que pretendam saber seus nomes.
Há rotas proletárias por onde caminha, sonâmbula
e perene, a vida…
Ontem vi o coração das cavernas desertas.
Vi roupas que não cobrem nem a sombra de um sexo,
pendendo em sapatos e cordões negros;
a face amarronzada de um jovem nu
dormindo sob o louro de neve de seu peito.
(novo Adão suburbano mastigando na lua
pão de areia e de nada).
Eu vi choupanas doentes como o amor supremo
e janelas inúteis como sangue nos mortos;
mulheres e homens idosos graduados na ciência
de ironizar o estrangeiro:
a flor do trigo verde,
a água pensativa,
a água feita de oxigênio e hidrogênio
e aquela feita de memória…
E de repente um grito galvanizou meu êxtase:
um homem bêbado vomitou um Viva o presidente!…
Porém as pedras, suburbanamente,
riram de pena.
E o ar ria mais do que elas.

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