Curadoria e tradução de Floriano Martins
Neste “Imagens”, tenho a memória da minha avó. Ela está convalescendo de uma cirurgia agressiva e, embora minha consciência esteja muito curta, meu coração está me rodeando. Ela já carrega seus cabelos completamente brancos, uma velha escurecida pelo sofrimento e pela doença. Recebe a sua visita pela porta de vidro. É o médico. Ele também, de cabelos crespos, um adulto muito alto. Estou ali com minhas mãozinhas cheias de objetos inomináveis: simplesmente não me lembro deles. E de repente ele nos cumprimenta. Nós dois temos esse nome de pétalas brancas. Margarita, diz ele, o mar é lindo. Agora parece que vejo o lenço de flor de laranjeira que nos envolveu, foi o próprio vento que veio com o Doutor Tello. E meu nariz, uma partícula de canguru, uma cartilagem mínima içada, e a certeza de que no passo lento de minha avó, esses elefantes o seguem. Eles são como quatrocentos.
Minha jornada é esta primeira história. Minha avó e eu somos acompanhados pela captura de uma estrela. São as primeiras linhas que me oferecem um cosmos ao qual é possível ir, algumas palavras numa caixinha de música.
A escrita, em sua vocação inicial, era um fio feito de imaginação e, ao mesmo tempo, de necessidade de habitá-la. Escrever era inventar, tentar colocar no mundo um artefato, um objeto que servisse, que iluminasse, trazer em benefício dos outros algo que, por exemplo, aparafusando, nos permitiria ver no escuro. Eu fui movido pelo desejo de ser a própria inventora, aquela que compõe uma poção como um mágico, aquela que carrega uma lâmpada incrível na mão.
Mais tarde, no mundo das palavras, tive o desafio da carpintaria. E prazer e impaciência: a voz como uma linha de pescar, a trama medonha de uma rede, cuja realidade final é, mais uma vez, a captura. O que estava em movimento, pare; o que estava na sombra, faça-o brilhar como uma pedra molhada. Mesmo hoje, escrever tem a ver com capturar.
A poesia é uma fonte infinita de signos e significados, desenhos assinados e ritmos. Embora envolva o que não é capturável, se durar alguns segundos em nossas mãos, pode nos proporcionar algum tipo de conforto.
A verdade é que estou no meio de uma busca como se algo de valor incalculável, imperceptível, tivesse se perdido. Nem tudo funciona com palavras, linguagem. Existe a respiração, existem as mãos no barro, as agulhas capazes de unir. Essas etapas estão no palco que compartilhamos.
Eu gostaria de unir as nuances dessa voz. Quando contado na folha, busca as sutilezas; quando dito no auditório, suas ressonâncias têm outros suportes, é menos uma tela do que uma vibração. Mas isso dificilmente é visto, não é categórico.
Sempre digo que o poeta trabalha com a palavra e o cantor com a letra. E acho que os letristas entendem uma forma diferente de comunicação. As músicas constituem um mundo de registros acessíveis e não tendem a usar complexidade. Embora, em alguns casos, os textos poéticos o incorporem. A riqueza de uma sintaxe quebrada faz parte do trabalho criativo. E às vezes é literatura para iniciados. Ao contrário da crença popular, muitos poetas cantam, acompanham as pessoas para viver e consolam. Publiquei rimas e métricas em pelo menos um texto por livro para me lembrar de que as canções têm um propósito em si mesmas. E talvez para aproximar essas duas bagagens, esses dois destinos.
Mas teríamos que aceitar hoje que temos sido ingratos com os songbooks e estamos reconhecendo melhor o valor poético das canções deste século. Não apenas no trabalho de fazer poemas musicais como alguns autores espanhóis chamam esse desejo, mas também nesses cantores-compositores que proclamam suas verdades filosóficas, talvez letradas, a partir de belos e às vezes complexos versos. Nem todas as músicas são amplamente distribuídas e existem canções para adultos.
Embora reconheça minhas primeiras influências nos versos cantados, nos poemas musicalizados (alguns poemas modernistas são corredores famosos), hoje gostaria de nomear César Dávila Andrade, seu enorme espinhaço, o colapso improvável de seus poemas, de suas histórias; Jorge Carrera Andrade, o luminoso. À separação do meu querido Jorgenrique Adoum, professor e amigo. À volúpia do pródigo Efraín Jara Idrovo. Ao querido Julio Pazos, primeiro professor e depois compadre, poeta cujo olhar admiro muito. Dessa mesma geração são Iván Carvajal, Iván Oñate, Ana María Iza, Sonia Manzano.
Entre os poetas mais próximos do meu ano de nascimento estão María Aveiga, Edwin Madrid, María Fernanda Espinosa, Cristóbal Zapata, Luis Carlos Mussó. Esses poetas que tenho seguido e que considero valiosos são dos anos 70: Aleyda Quevedo, Ernesto Carrión, Xavier Oquendo, Alfonso Espinosa, César Eduardo Carrión, María de los Ángeles Martínez, Juan José Rodinás. E um notável poeta, nascido em 1993: Juan Suárez Proaño.
ALEYDA QUEVEDO ROJAS
DESEJO
Dizem que Safo saltou do vazio do penhasco de Leucas. Ela mordeu os lábios e uma torrente elétrica acompanhou seu corpo quente e nu. Sem paixões, pedras ou catástrofes de dor, ela mergulhou no mar à procura de si mesma. Longe do fulgor do desejo, longe do lugar da dor amarga e doce, mel indefinível, mel azedo.
QUEIMADURA
O desejo. O que deseja. O desejado. Desejando-te. A beleza efêmera. A tríade do dano, imersão e fragilidade que queima a pele. O deseja-te que escraviza os queloides do meu eu. São os meus estados que você pode ver antes de iniciar qualquer exercício de afundamento. Erros que as pessoas criticam. Cicatrizes de pesado relevo. São estados do cérebro que arrastam à desembocadura do tédio. Tratas de abandonar essa queimadura extensa sobre o corpo que te marcou. Procuras falésias e terraços altos. Pedras lisas. Adagas e punhais. O que se deseja é voraz. A pessoa que deseja perde força e cobiça. O desejo sempre no tempo presente. Foi para Sócrates e para Safo ainda é. Eros Criador.
MECANISMO
A arqueologia do desejo parece ser explicada dentro de um mecanismo em cadeia: pulsão-emoção-desejo. Um mecanismo semelhante ao vento frio da montanha quando levantas os cabelos. O fato é que a palavra desejo entra gradualmente em minha casa e devora portas e dobradiças. Arranha móveis e se entrelaça com a relva do jardim. O desejo é aterrorizante, e frio. Entra com um chute furioso. Pulsão complicada sem a mínima serenidade. Reverdece as flores do verão, mas murcha o aloés feminino do terceiro jardim. Tentei encará-la como uma metáfora emplumada, mas tornou-se a fábula favorita dos meus sentidos. Toco nas fendas da casa e nas dobras dos tapetes. A palavra desejo é imprecisa para definir paixão, mesmo que brilhe e corra para o mar. É ainda pior entrelaçá-la com o tempo futuro e o do esquecimento. Agora eu confio apenas que a palavra desejo me permitirá desmontar e juntar minhas próprias emoções espalhadas por toda a casa. O vento gelado é aterrorizante, elevando-o com desejo. É um animal procurando uma casa, caçando meu corpo. Procurando a cavidade quente, úmida e desconhecida onde se aninhar.
VÓRTICE
O movimento do corpo e a imobilidade da alma que contém a minha existência. Redemoinhos subterrâneos e sanguíneos. Eles me jogam no vórtice que é intempérie do amor. Até que desejes estar aqui entre o movimento e a imobilidade do meu amor. Até que seja teu desejo enlaçar-te ao ritmo das minhas pernas que correm em direção ao lago verde de ondas suaves. Turbilhão interno do que parece ser um suspiro. O amor contigo é abraçar as profundezas do mar sulfato, brometo, sódio e flúor. E pacientemente perder-se entre o sangue e as cavernas genuinamente íntimas do turbilhão.
MURO BRANCO
O vento me leva a Kate Millet, sussurrando: “o amor é o ópio das mulheres”. – Sua afirmação me desequilibra – enquanto vago pelos corais, pensando que sempre soube e não queria reconhecê-lo. Em minha fuga dessa onda branca e gigante que foste tu, muro espuma branca e água queimante que me derrubou tantas vezes, murmuro a frase pela ferida. Já na superfície, percorro com minha boca o sal imaculado e o magnésio mar. “O amor é o ópio das mulheres” e na profundez ou em terra tudo consiste em saber como fugir a tempo das ondas de um amor salgado, doce, amargo, densamente amargo. Fugir com essa boca que não te beija mais, não te nomeia, não te come mais. Fugir, mesmo que o amor seja o sal da terra.