Curadoria e tradução de Floriano Martins
Eyra Harbar nasceu em Almirante, província de Bocas del Toro, Panamá, em 1972. Graduada em Direito e Ciências Políticas (Universidade Santa María La Antigua, 2016), com mestrado em Gênero e Desenvolvimento (Universidade do Panamá, 2001). Em 2013 venceu o Concurso León A. Soto com Paraíso quemado, uma coletânea de poemas que retrata a difícil e complexa experiência de refugiados e migrantes que tiveram que cruzar fronteiras para salvar suas vidas. Entre 2015 a 2018, recebeu mais três prêmios.
PÂNTANO
Fora de casa o estrangeiro se indaga,
após inúmeras milhas náuticas
e de selva a pé,
se agora é livre,
se ainda é chamado de filho em sua morada,
agora amarga,
se ainda recordam seu rosto destroçado.
Se acaso sua mãe ainda está lá.
Fora da casa o labirinto é verde.
A selva respira sozinha
com um rugido engole feras
e ele indaga se as estradas bebem
suor ou sangue
quando a patada da presa pelas noites
espanta o pouco sono
de uma fronteira que nunca chega.
CINEMA
1990: para o cinema universitário
que me salvou da catástrofe
Quando eu era estudante
e morava na periferia,
ia ao cinema da universidade.
Não importa o que eles projetassem,
eu buscava outro filme russo ou de Fassbinder.
Monsieur Houlot me fez rir um domingo.
E não me comprometia amantes na sala escura.
Éramos o filme e eu.
Com o rosto maravilhado pela linguagem ininteligível
eu questionava apenas um detalhe técnico,
porque olhava cada imagem caindo neve ou Cuba.
Eu queria saber quem era esse
que me pegava pelo braço à tarde?
Sem saber, o carrinho do mímico, Gutiérrez Alea e Passolini
estavam construindo o longa-metragem da minha adolescência,
de menina em uma cidade sitiada.
Peguei as mãos que se ofereceram para me mostrar
um lugar que estava em outra parte, como disse Kundera,
com meu assento pago pelo preço de estudante
e o desejo de ter a boca aberta
por qualquer motivo que não fosse
asco.
PESCA
Como linhas de pesca
ainda molhadas
que não negam o rastro
em que anda
sua natureza pesqueira,
o cheiro que exalam
as brânquias de sal
me guia até o mercado.
PÃO
A tua pele de pão
suavemente mordida
permanece entre meus dentes.
morder a tua pele,
colheita de trigais.
Minha boca te busca ansiosa.
Corpo que despedaço,
fome de minhas veias.
Paladar, praça de fogo,
aguarda o beijo;
o sagrado ofício do padeiro
em minha boca.
NAUFRÁGIOS
Eu não poderia saber que do outro lado do labirinto
havia o outro labirinto, o do tempo
Jorge Luis Borges
A memória será apagada antes do amanhecer
a noite que tocou a água sombria,
a longa insônia que arrastou a onda gigante
e esses olhos míopes indefesos
que na escuridão indagaram
onde irão morrer hoje.
Seres da profunda sepultura de água
vieram para me pregar no sarcófago da manhã
e estão de luto pelas coisas, os trapos conhecidos,
por aquilo que proporcionou bondade na cansativa jornada.
Todo canto destinado ao esquecimento perturba a orientação do barco
e faz com que ele se perca no vazio.
O porto de partida está tão longe
que já sem bolsa, sem família,
eu me deito com a mão no peito
para me sentir acompanhada pelo domínio do efêmero.
É uma canção amaldiçoada no coração sem vitória,
uma balada azeda que suspeita de sua maldade.
Eu já me havia curado do afogamento nas tempestades,
do horizonte órfão que morre na escuridão,
porém outra vez retorna o salitre
em seu ritual contra as ondas de água fria,
outra vez regressa o som do mar
que atinge o labirinto inquebrável,
outra vez a madeira se parte
nos incontáveis caminhos do retorno.
Este navio insignificante termina em pedaços,
inútil quando encalha a sua bravura.
A memória apagará antes do amanhecer
os restos do naufrágio.