5 Poemas de Giovanni Quessep (Colômbia, 1939)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Afasto-me de qualquer estilo de época e de qualquer moda e não me interessa descrever os objetos da realidade mais tangível. Acredito que todo poema deveria ser uma metáfora da alma: metáfora de suas maravilhas e seus terrores, de seus céus e seus abismos, ou seja, a transfiguração da realidade, que não constitui seu esquecimento, mas sua afirmação. Mesmo o eu lírico é do reino das fábulas.

GIOVANNI QUESSEP


PARÁBOLA

Estava seguro pelo voo das gerações
               Que era uma possibilidade lendária
Ouviu contar aos soldados do rei
               Histórias que brotavam da mão do tempo
               Ou se perdiam na penumbra
               Onde a flor de Lótus confabulava com sua brancura
               Para tocar o esquecimento
               Que haveria de salvá-los da ignomínia e da guerra.

A que ele considerava a mais estranha das fábulas
              O perseguia desde sua infância
A ouviu contar a seu pai à beira do fogo
              Enquanto a neve de todos os caminhos
               Terminava em suas faces angulosa
A ouviu contar aos sacerdotes ao pé dos verdugos
                Quando a cabeça do sentenciado traidor ou amante
                Rolava como uma flor de madeira
Sonhou a história ou a lenda
E algumas vezes despertou com a sensação do esquecimento entre os olhos
Ou suas mãos tocavam uma coluna
Como se a pedra não fosse mais que um pescoço de pomba

Porém a lenda que atravessava os séculos
                Não resultava mais que uma lenda
Transcorreram milênios sucedendo-se as dinastias
Os povos suportaram a fome e a peste
Reis brutais ou invasores sanguinários
                Não fizeram mais que multiplicar o sonho
                Dos devoradores de lótus
E as seitas se multiplicaram
E houve divisões e grandes matanças
               Entre os mesmos que mantinham a fábula
               Como o fio de uma madeixa perdida entre um labirinto de brinquedos

Existia tão somente uma possibilidade de que nascesse a Flor de Lótus
                Em qualquer dos jardins
                Ou no mais afastado dos bosques
Somente uma possibilidade de salvação
                Que o destinado a encontrasse a tempo
                Antes que começasse a murchar
Uma lótus entre milhões de lótus

Só então começaria a esquecer
A desfazer a história de sua vida e a dos demais
                A história da neve e da pedra
                Do dragão e da borboleta
                Do irmão ou do inimigo
A destecer o destino como quem desfaz um desenho
                Gravado por agulhas milenares na carne torturada
Assim começaria desde a primeira letra do tempo
                 A contá-la novamente
Até esquecer seu nome e o nome de todo ser
                A nomear a lenda e transformar a fábula no mundo real
Porém quem poderia asseverar que a Flor de Lótus
                A única possível
                Não era já um punhado de pó no verão
                Desde há um minuto ou mesmo séculos?
Como preservar durável uma esperança semelhante a um castelo
                Construído sobre a ponta de uma agulha?
Por isso quando começou a compreender que esquecia
Quando já não podia repetir o nome de um país ou de um pássaro
Acreditou que era um sonho como tantos outros
                 E se dispôs a sonhá-lo
Porém seu sonho era a possibilidade lendária
O que tocaram suas mãos começou a esquecer-se e recordar-se
                E os objetos se converteram também
                Em portadores de esquecimento

Não podia reconhecer as portas nem o pátio de sua casa
                Aos que confundiu com um cervo branco que voava na noite
Não podia reconhecer as armas dos soldados
                 Nem o rosto do verdugo
E começou a nomeá-los com palavras de uma linguagem distinta
                 Que o expuseram à burla e à lapidação
E a espada se chamou lua ou álamo
E a lua ou o álamo se chamaram espada


CANTO DO ESTRANGEIRO

Penumbra de castelo pelo sonho
Torre de Cláudia afasta-me a ausência
Penumbra do amor em sombra de água
Brancura lenta

Me diz o segredo de tua voz oculta
A fábula que teces e desteces
Adormecida apenas pela voz de fada
Branca Penélope

Como entrar em teu reino se fechaste
A porta do jardim e vigias a ti
Em tua noite se perde o estrangeiro
Brancura de ilha

Porém há alguém que vem pelo bosque
De alados cervos e estrangeira lua
Ilha de Cláudia para tanta pena
Vem em tua busca

Conto do real onde as mãos
Abrem o fruto que esqueceu a morte
Se um fio de lenda é a lembrança
Bela adormecida

A véspera do tempo em tuas margens
Tempo de Cláudia afasta-me a noite
Como entrar em teu reino se clausuras
A branca torre

Porém há um caminhante na palavra
Cega canção que voa até o encanto
Onde ocultar sua voz para teu corpo
Nave voando

Nave e castelo é ele em tua memória
O mar de vinho príncipe abolido
Corpo de Cláudia porém enfim janela
Do paraíso

Se pronuncia teu nome ante as pedras
Te move o esplendor e nele derivas
Até outro reino e um país te envolve
A maravilha

O que é esta voz desperta por teu sonho?
A história do jardim que se repete?
Onde teu corpo junto para qual penumbra
Vais em declive?

Já te esqueces Penélope da água
Bela adormecida de tua lua antiga
E até outra forma vais no espelho
Perfil de Alice

Me diz o segredo desta rosa ou nunca
Que guardam o leão e o unicórnio
O estrangeiro sobe a tua colina
Sempre mais solitário

Maravilhoso corpo te desfazes
E o céu é teu fluir no escasso
Sombra de algum azul de quem te segue
Mãos e lábios

Os passos na aurora se repetem
Retornas à canção tu mesma cantas
Penumbra de castelo no início
Quando as fadas

Através de minha mão por teu leito
Discorre um desolado labirinto
Perdida fábula de amor te chama
Desde o esquecimento

E o poeta te nomeia sim a múltipla
Penélope ou Alice para sempre
O jardim ou o espelho o mar de vinho
Cláudia que retorna

Escuta o que desce pelo bosque
De alados cervos e estrangeira lua
Toca tuas mãos e ao teu corpo eleva
A rosa púrpura

De que país de onde de que tempo
Vem sua voz a história que te canta?
Nave de Cláudia aproxima-me de tua margem
Lhe diz que o amas

Torre de Cláudia afasta-lhe o esquecimento
Brancura azul a hora da morte
Jardim de Cláudia como pelo céu
Cláudia celeste

Nave e castelo é ele em tua memória
O mar novamente príncipe abolido
Corpo de Cláudia porém enfim janela
Do paraíso


O CÉU DO ABETO

Gravo em ti minha palavra
que pode fazer descer a lua a esta terra.
Apenas uma canção é necessária
para revelar o destino? As constelações
voam por dentro de tuas flores
e o laurel que é negação da morte
abre uma câmara desconhecida.
Tua sombra desejada
me dá o caminho que me transfigura:
Gravo uma folha queimada pelo verão
e sigo transcorrendo por teu céu.


VIGÍLIA

Passos no jardim. O vigilante
golpeia o córtex da macieira
e há pássaros que fogem, outros ficam
enjaulados em tempo e luz de prata.
Fábulas não me encantem; quero velar
minhas armas esta noite ou adentrar-me
pelo jardim e ouvir sob meus passos
os trevos que guardam no pó
as maravilhas da branca torre.
Debaixo da macieira e ao meu lado
uma mulher folheia um velho livro:
Demônios há em torno e uma fonte
reflete um cervo, um tigre de Bengala.
Os passos vão e vêm e não sabem
quem é o vigilante, o vigiado.


UM VERSO GREGO PARA OFÉLIA

A tarde em que soube de tua morte
foi a mais pura do verão, estavam
as amendoeiras crescidas até o céu,
e o tear se deteve na nona
cor do arco-íris. Como era
seu movimento pela branca margem?
Como teceu teu voo desse fio
que dava quase o nome do destino?

Somente as nuvens na luz diziam
a escritura de todos, a balada
de quem viu um reino e outro reino
e fica na fábula. Levaram
teu corpo como neve entre o ramo
de pó que já ouviu o canto e guarda
a paz do rouxinol dos sepulcros.

Fechei a grade do jardim, as altas
janelas do castelo. Quis apenas
deixar que entrasse o trovador que fazia
água e alaúde e flor da madeira.
Disse seu canto: o tempo desteceu
o que teceu o Senhor, tapete de prata
que já sucede e anda pela lua,
tapete que à madeira torna. A sós
poderás encontrar a forma que te espera.

Não sei que azul de imediato esteve só,
não sei qual bosque deu à lua amarga
seu sortilégio, o girassol encontrado
sob a nave em viagens que recordam
as claras águas do Mediterrâneo.
A tarde em que soube que te ias
foi a mais pura da morte: estavas
em minha memória falando-me, esquecida
entre os lírios e em um verso
de San Juan de la Cruz. Que céu havia,
que mão fiava lenta, que canções
traziam a dor, a maravilha
que se assombra de ser nessa hora
em que estalou a lua nas amendoeiras
e queimou os jasmins. Vinhas
pelo lado do mar onde se ouve
uma canção, talvez de alguma afogada
virgem como teus passos na terra.

Depois te foste por minha alma, rainha
de fábulas antigas e de pó
semelhante às naves que semearam
de sândalo e cedro o mar de vinho.
Solitária ias, bela e em silêncio,
bela como a pedra; havia em teu ombro
um violino apagado. As amendoeiras
do pátio e os jasmins anunciavam
uma tormenta de verão. O céu
quebrou o espelho de minha casa e profunda
sonhou a morte no poço. Estive
assim, perdido nessa sarça ardente
que oculta na memória os que amamos.
Vesti um luto azul e fiquei só

em vésperas do dia mais extenso.

 

 

 

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