5 Poemas de Luis Fernando Cuartas (Colômbia, 1956)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils

Luís Fernando Cuartas. (Colômbia, 1958). Poeta, editor, ensaísta, artista visual, performer. Faz parte da Usina de Criação da revista surrealista Punto Seguido, com mais de 60 edições em papel. Colabora com vários meios de comunicação continentais onde são publicados os seus poemas e ensaios Agulha Revista de Cultura, Matérika, Puesto de Combate etc. Tem sido convidado a vários países para encontros culturais e poéticos. Ele é o fundador das Oficinas de Escrita. Dirige o programa cultural “Taller de Luna”, Radio Universidad de Medellín. Recentemente publicou o volume poético Calle no calle. Participou da exposição surrealista “100 anos é nada”, Costa Rica, Puntarenas, 2019. Mora em Medellín.


FAZENDO UM PEIXE POÉTICO

O peixe não está na água. O peixe é de fumaça. Sai de minha boca. Eu o imagino. O degusto. Sinto que respira e anda. Este peixe que invento é meu jogo e minha palavra. No momento em que é feito é um peixe de ninguém. Sai, existe e se transforma. Pode ser tocado por ti se assistes a seu encanto. Dá pena que outros não o vejam, derrotam-no arrancando sua boca os seres taciturnos de calculada pontaria, exatos de razão e cegos para o mar da invenção. Não o veem. Não querem vê-lo. Descamam sua pele sem nascimento. Combatem-no com suas fórmulas pragmáticas. Talvez o menino e o poeta sejam amigos desse peixe: fazem com que ele viva no aquário de suas mentes. Levam-no a passear. Falam com ele. Guardam-no em sua caixa de mentiras. E o presenteiam para fabricar talismãs com a água do mistério.


ENTORSE

Falta cometer o equívoco para saber que somos da terra. A lua nos jogou ao chão. O próprio Li-Po conheceu a água fria em meio a sua entorse buscando a luz noturna em um arroio. Pálpebras inundadas de orvalho são pequenas lágrimas que saem quando alguém cai, porém o ser se ergue, manca por um momento, o tornozelo aumenta e a água dos olhos já se foi. A bicicleta, esses óculos a cavalo, que leem ruas e se espatifam contra o poema convertido em muro. Tudo é veloz, uma piscada, uma rua, é o caso de descer da máquina e em seguida dobrar o pé, certo desequilíbrio que é a dúvida, uma dor que é certeza e um esquecimento que é a única coisa que cura. Todos nós temos nossa entorse, a torcedura da vida, o pé mal apoiado no piso já movido, a arte de um desamor que nos move para o lado débil por onde se gasta o corpo. Todos somos uma entorse, trema o corpo após amar imensamente, cambaleie as pernas após subir milhares de ladeiras, cai o mais sólido, o perene se derrete. Mas depois de tudo seguiremos a rota que nos outorga o grande desejo, a leveza e a sensação de estar vivos com a bicicleta do poema como uma mascote urbana que nos ajuda a ler a sorte em cada esquina.


RETRATO DOS ESTULTOS

Sermões vão e vêm sobre a precariedade da ordem cósmica
Tufo de bufões que fazem alarde de uma flecha invisível que nos conduz até o inferno
Clara impostura de uma rêmora de peixes parasitas e de estorvos sobre o montão de puas
Algo impede que o mescal esteja fluindo
Algo debilita a sabedoria das salamandras
São os estultos de extensas veias fervidas, gozadores que ficam estáticos decorando uma pílula de potássio
E uma canção de ninar para sedar os babosos agônicos de arsênico
Costumam escavar sobre chapas de ferro, leem ao contrário o alfabeto, com uma dislexia presidencial hereditária,
Observam pela ponta do revólver com o dedo no gatilho e bocejam entediados com a leitura de um poema.
Estultos existem em exercício sacerdotal e dão conselhos sobre a hecatombe brutal dos acentos enquanto absolvem um capanga de ofício com crachá de santidade
Estultos nos bancos e se tornam os que não olham o envelope de cobrança de uma angústia, porém fervem de ira quando as pirâmides da riqueza são de uma maquinaria matemática que jamais poderiam compreender.
Estultos de roupas de etiqueta, bramem, interrogam, são a inteligência investigativa, os sábios conselheiros de mandatários desmiolados. A estupidez com cara de anjo
Ou a soberba em pele de cordeiro convertido em estanho, níquel, mesquinhez comercial e um diploma vendido em leilão de uma universidade sem nome.
Estultos bocejantes,
Rimbaud os viu nas poltronas das bibliotecas, paquidérmicos serenos, apenas abulia…
Artaud os conhecia nas overdoses das drogas psiquiátricas.
Edith Piaf vomitava ouro nas janelas e lhes fazia sentir que sua voz melancólica e profana era para não deixá-los dormir.
Nero foi um estulto poeta bufo com coroa de imperador sanguinolento, enquanto os Bush são granjeiros bêbados, veem petróleo até na sopa
E são estultos nas coordenadas entre a política e a mística.
O retrato dos estultos não é uma afronta contra a idiotice, Glucksmann sabia que por trás desse estado existe uma dúvida arbitrária.
Um pós-modernismo enrugado e um estado de alerta camuflado, são os estultos os que nem fermentam nem fazem ciência.
Simples lagartas cansadas que bendizem, predicam e espirram.
Silvia Plath cruzava a água e inalava o gás doméstico para não cruzar com a própria sombra, em cada letra sua havia um combate contra a secura espiritual que a tudo dessangra.
Virginia Wolf preferiu um abrigo repleto de pedras e as águas de um rio do que ficar estática contemplando o passo do tempo da mísera sacada da bobagem vitoriana.
Oscar Dominguez busca a petrificação do tempo ao lado do poema e se suicida cortando as veias na festa de uma amiga, certamente nada estulto, é O Touro moribundo, nada abrupto, é o cristal anguloso da liberdade contra o sedentarismo estéril.
Estultos, escondam a cabeça…

Outros olhos fitam agora o sonho sem piscar…


SERRANIAS

Os montículos da terra uma vez são pirâmides vegetais, apontam com seus dedos de granito vestidos de musgo,
como se quisessem debruçar seus vértices na nuvem mais próxima.
Outras vezes são montanhas chatas, planaltos nivelados onde são postas casas e instaurados vilarejos tão próximos das estrelas.
Eu as vi também como desfiladeiros, fundos, iguais às penas de cada ser quando se sente só e olha e olha
o vazio que nasce do ventre da terra.
Há serranias com fumarolas colossais, votam cinza do mesmo modo que alguém tira vapores pela boca
quando é sonho não é muito grato e os dragões do fogo saem para queimar as horas tristes.
Outras colinas são aquosas e manam chuvas permanentes entre imensas samambaias quase do tempo da pré-história.
Montículos de cobre, de ouro e de cristal de rocha,
porém as grandes montanhas estão na memória,
a neblina que vinha nos buscar quando bebíamos descalços o leite recém ordenhado das vacas,
essas montanhas que nos vestem de árvore e nos deixam semeados entre os caminhos que ainda não cruzamos,
elas também existem feitas de puro amor e desamores,
as que se mostram nos sonhos e nos deixam sinais para seguir vivendo,
as serranias de grutas e mistérios ainda insondáveis
mas que nos prometem ir buscar o coração tíbio da Terra.
Nesses lugares talvez tenhamos desejado nosso estigma,
os signos com que nos marcaram a vida, a cifra da persistência
e ao mesmo tempo de uma desolada sensação que se cobra de fantasmas e beijos camuflados sobre a relva.
A essas retornaremos sempre,
cobertos de geada, chovidos por dentro e por fora,
aguardando uma pradaria em meio à ladeira, um descanso no mesmo lugar onde se inicia a subida
nesse lugar onde algum dia repousaremos
e onde encontraremos um gesto de liberdade tão parecido com um beijo.


TREVO

Muita força invisível é necessária para ver o trevo do alquimista.
Em primeiro lugar o olho atento.
Depois uma paciência que encha o tanque da intranquilidade.
Mais à frente há que saber o lugar onde essas flores podem se dar,
por exemplo, em um olhar pode haver uma,
em um livro se encontram, porém podem se perder facilmente.
Não são flores comuns e correntes,
são transparentes,
como um pensamento diáfano
e uma metáfora bem feita no momento da desolação,
dessas que caem sobre o vidro do cotidiano
e resvalam até chegar em um lugar recôndito de nossas desventuras,
e saem logo vestidas de pétalas onde se triplicam
como a dúvida, a certeza e a negação.
Esses trevos são a nossa capacidade de voltar a semear perguntas,
cada uma dessas flores são um estigma em nossas vidas,
uma nota deixada ao acaso, a proposta silvestre de um deus escondido entre a relva.
Elas nos favorecem sem sabermos tomar delas
o doce bálsamo de um medicamento fermentado em nossas mãos,
quando escrevem, quando acariciam, quando pintam,
quando fazem a necessária tarefa de tornar-se mais humanas.
Queira o destino
poder voltar a vê-las
cada vez que possamos nos encontrar.

1 comentário em “5 Poemas de Luis Fernando Cuartas (Colômbia, 1956)”

  1. Sempre é bom ler poesias, romance, suspenses, você viaja com os personagens, você vivência os momentos. Pra mim é delicioso!

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