5 Poemas de Miguel Ángel Bustos (Argentina, 1932-1976)

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Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Floriano Martins

Miguel Ángel Bustos possui uma ao mesmo tempo irrequieta e trágica biografia. Foi casado com Iris Enriqueta Alba de Bustos, com quem teve um filho, Emiliano Bustos. Entre 1952 e 1956 estudou idiomas: inglês, francês, alemão e italiano. No início da década de 1960 iniciou uma longa peregrinação que o levou pelo norte da Argentina, Brasil, Bolívia e Peru. A partir de 1966, incorporou o desenho como forma expressiva, o que lhe permitiu ilustrar sozinho quatro de seus livros de poesia. Em 1968 ganhou o 2º Prêmio Nacional de Poesia com a obra Visión de los hijos del mal. Foi professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, antropólogo e militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Fez crítica literária para revistas e jornais. Miguel Ángel foi sequestrado em 30 de maio de 1976 em sua casa, localizada na cidade de Buenos Aires. Em 20 de junho do mesmo ano, foi assassinado junto com outras 8 pessoas em um campo próximo à costa no distrito de Avellaneda, no episódio conhecido como Massacre de Sarandí. Em 2008, a Editorial Argonauta publicou sua poesia completa Vision De Los Hijos Del Mal. Em 2015, a tradução de sua obra para o francês por Stéphane Chaumet foi publicada sob o título Archipel du tremblement: Anthologie (Editions Al Manar. Neuilly-sur-Seine). Em 2018, a tradução de sua obra para o inglês por Lucina Schell foi publicada sob o título Vision of the Children of Evil.


NÃO CREIO NO MISTÉRIO DA CHUVA

Não creio no mistério da chuva
comedora da noite nas janelas.

Creio nos pássaros que arranham os sóis e as luas.

Não creio na chuva
em sua força que morre no pó.

Creio no mar pai desta chuva.

Não creio na chuva porque penaliza
e nos dá árvores bem negras.

Creio em nós que dormimos abraçados.


RAJADAS

Neste pouco de vinho
descansa uma uva inflamada de sol
quebra a alma uma pedra de fogo.
Tudo foi muito lindo teu corpo de água teus olhos violentos.
Brutal o pássaro enlouquecido de plumas. Brutal nós dois.
Como uma virgem suave
cheirosa
a virgem tinta
enamora entre as pernas
a palavra dor.
Dá-me a mão um pé teu um pelo para levar no coração. Eu te dou uma gema de meus dedos para que toques o que toco. Assim te abrirás.
Chove
vinho
nas
entranhas.
Chove fogo.
Eu te contei a história dos fantasmas dos longos subterrâneos da madrugada. Agora nos toca lavar as caras lavar as ruínas do coração
Amanhece nas uvas do poema
amanhecemos sorrindo como um leite e um pão
ou um peito.
Ou nada mais que um pássaro visível em suas plumas
de fogo.


JOANA A LOUCA ENTRA EM MEU CORPO

O calor imenso queimou os vidros. O arco da janela explodiu; a porta já havia caído na fumaça.
Eu, o que fazia passeando?
Ali fora vozes e gemidos, jorros de água saltavam na rua.
Venha, venha!, a voz do bombeiro que perigosamente havia subido até a minha janela para resgatar-me me fez aproximar.
Dá-me a mão!
(Porém então eu lhe disse): sou Joana a Louca, diga-me que sim.
Ele não ouvia, buscava minha mão.
Sabendo o risco que corria soltei o punho do homem e me perdi na fumaça.
Procurei minha cama. Leves chaminhas seguiam o tecido da colcha. Eu a pus para um lado, e me deitei. Fechei os olhos.
Porém de longe me gritaram durante muito, muito tempo: és Joana, Joana nos infernos.
Dá-me teu corpo mortal.


ARQUIPÉLAGO DO TREMOR

Sobe o mar salga as areias incendeia a grama com sóis caídos em suas águas.
Eu quero habitar a terra que treme como um pulmão de criança. Que lance frutos até os céus cruzados por pássaros de vidro em sangue e plumas.
Quando movo a língua buscando palavras como uvas bebo seu álcool que invade minhas veias como um beijo de lábios vazios. Oh minhas palavras minhas meninas.
Vamos ao Arquipélago Santo do Tremor, a suas pedras seus mármores gelados que riscam rios violetas contra selvas negras como coágulos.
Ouve a lua abrir o céu de mercúrio.
Olha as estrelas os verbos incendiados como falam dão à boca a nova língua do milhão de letras de poucas letras. Em suas costas quebram colunas de Galáxias, cristais habitados que esperam uma língua para nascer In Gloriam.
Corta o ar um punhal de verbos minha língua é sua criança. Sob o azeite alucinado do mar minha boca devora peixes espessas catedrais falantes.
Eu sei tua cifra, tua cifra oculta abismo dos céus.
Minha palavra-ventre da profecia, estamos nas Ilhas Verbais. Quando for noite, a noite livre do verbo futuro, detidos no abraço com uma mão apenas em teu corpo suportemos o alarido que fende o Universo. Demos nossas bocas templos azuis atravessados por clarões.
Na cruz o idioma espera a lança que fira seu dorso visionário.


CONDE CASA NEGRA
CONDE LAUTRÉAMONT

Sob a lua rosada de Montevidéu em chamas
amaste o número e o grito do mar.
Pastor de lobos na tarde
que sonho em música de abismos
atou a tua língua às alturas do céu?
(Joguei com teu crânio
esmeralda de prantos
uma e mil vezes cinco
na Buenos Aires do Sítio.
Minha alma com a tua
na praia fantasma do século)
Conde plebeu
tens o rosto de todos os crimes
de toda a inocência
do rosário nas mãos
de uma donzela em luto.

Rogo a ti conosco;
potros escuros
raios com tua ardente sombra;
queiras dar o verbo que tua entranha
deseja para selvas da aurora
em casa noturna do sol silêncio.

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