Eduardo Lizalde (México, 1929 – 1922)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Na ideia de beleza está implícita a de horror. Qualquer outra concepção será vácua e possivelmente ingênua. Nos animais, se observarmos bem, se cumpre cabalmente esta dupla fascinação. A raposa simboliza a astúcia, é uma imagem que está presente em Blake e na Bíblia. É um animal que sempre está à distância e que ocupa sua vida em demarcar seu terreno. Cristo é, ao mesmo tempo, a imagem do tigre e do cordeiro, é o bem e é a destruição porque é, antes de tudo, a imagem terrenal de Deus. A raposa é o animal voraz, maligno, por natureza, e quando está doente, ou impossibilitada, se torna ainda mais perigosa.

[…]
Sou um cético radical. Gostaria que o homem fosse melhor, que a humanidade caminhasse para um mundo mais justo. É por isto que em Caza mayor falo do desaparecimento do homem, do tigre infernal e celestial. Desgraçadamente essa espécie está desaparecendo. Já não há tigres em Sumatra, já não há tigres na Índia, restam uns 400 em todo o planeta. E, em troca, é uma lástima que cresça a raça humana, que é muito menos bela e muito mais bestial que o tigre; prosperam os ratos e prospera a imundície ambiental. Esta ideia de extinção está tomada do Eclesiastes, que é a visão apocalíptica no sentido de que tudo haverá de terminar.

[…]
Ao reler Baudelaire topei com uma extraordinária e lúcida contribuição sua. Em um de seus textos Baudelaire indaga: Que é a arte? E depois de sucintas reflexões determina que a arte é desfiguração, que a arte não imita necessariamente a realidade, porque está marcada pelo enigma, daí o caráter de uma revelação. A mimesis aristotélica de certa maneira é o mesmo, ainda que Aristóteles tenha dito sob outros preceitos, ou seja, que a imitação deve ser iluminadora, já que a realidade é tão vasta que sempre oferece novas figuras. A propósito desta ideia me vem à mente algo com que lutei durante muitos anos e que era nada menos que suprimir o significado verdadeiro de uma metáfora. A princípio de contas a metáfora não abarca, como às vezes se acredita, todo o sentido que o poeta tenta lhe dar; sempre transpassa a ambiguidade e o caráter emocional que dela emana. De maneira que trabalhar somente com metáforas faz da poesia algo absolutamente tedioso. Creio que o conceito pode levar, em troca, a insuspeitados estágios da percepção.

[…]
O tom epigramático de minha poesia me economizou incontáveis investigações ensaísticas, não obstante, detrás de duas linhas epigramáticas está contida uma profunda reflexão e, quanto à imagem do tigre, o contemplador por excelência e o que atua no momento mais adequado, sigo sendo fiel ao que sua beleza ambivalente projeta: serenidade e violência, temeridade e tédio, memória e sublimação, potências que insinuam sua majestosidade e que sempre são dignas de celebrar.

EDUARDO LIZALDE
“Las andanzas del tigre”, entrevista concedida a Daniel Sada. Revista Periódico de Poesía # 4. México, 1993.


GRANDE É O ÓDIO

1.

Grande e dourado, amigos, é o ódio.
Todo o grande e dourado
vem do ódio.
O tempo é ódio.

Dizem que Deus se odiava em ato,
que se odiava com a força
dos infinitos leões azuis
do cosmos;
que se odiava
para existir.

Nascem do ódio, mundos,
óleos perfeitíssimos, revoluções,
tabacos excelentes.

Quando sonha alguém que nos odeia, apenas,
dentro do sonho de alguém que nos ama,
já vivemos no ódio perfeito.

Ninguém vacila, como no amor,
na hora do ódio.

O ódio é a única prova indubitável
da existência.

2.

E o medo é uma coisa grande como o ódio.
O medo faz com que exista a tarântula,
torna-a coisa digna de respeito,
a embeleza em sua desgraça,
apaga seus horrores.

Que seria a tarântula, pobre,
flor zoológica e triste,
não pudesse ser esse tremendo
causador de medo,
esse punho cortado
de um negro símio que enlouquece de amor.

A tarântula, oh Bécquer,
que vive enamorada
de uma tensa magnólia.
Dizem que às vezes mata,
que descarrega suas iras em coelhos adormecidos. É certo,
porém morde e descarrega suas tinturas internas contra outro,
porque não alcança morder seus próprios membros,
e lhe parece que o corpo do que passa,
aquele que amaria se o soubesse,
é o seu.

3.

Com seu grande olho o sol
não vê o que eu vejo.
KEATS

Se não as tivesse descoberto
partindo em dois o gato,
abrindo nozes,
remexendo pelas veias,
Deus não haveria se inteirado dessas coisas,
para sua criação ocultas,
perfeitamente ocultas.
Destas coisas terríveis
como ratos submissos
ou vidros comestíveis.

Outro Deus antagônico forja-as,
em seu mundo gêmeo de gêmeos,
cego da cegueira,
banhado por suas nuvens de suor.
Sua segunda matéria armada em vãos.

E estas coisas existem sem meus olhos,
sem os olhos de Deus,
existem sozinhas,
gotas de tinta no deserto,
natimortas.

Deus as esquece a marteladas,
sonha em seu esquecimento,
no que não se deve a tantas imperfeições:
e olha suas mãos sem polegares.

4.

Mesmo que alguém creia que o terror
não é senão o coturno da ternura
virado pelo avesso,
seus pastos não são esses.
Não estão ali os comedouros
do terror.

A ternura não existe senão para Onã.
E ninguém é misericordioso
senão consigo mesmo.

Ninguém é terno, nem bom,
nem grandioso no amor
mais do que para suas vísceras.
A cadela sonha que dá seu amor ao filho,
goza amamentando-o.
Reino é a solidão de todas as ternuras.
Somente o terror desperta os amantes.

5.

Para o ódio escrevo.
Para destruir-te, marco estes papéis.
Exprimo o ácido humor do ódio
nesta tinta,
faço tremer a pluma.

Nestas folhas,
que esculpo até secar-me, jogo
todo o ódio que tenho.
E é inútil. Bem sei.
Só te digo uma coisa:
se estas últimas linhas
fossem gotas,
seriam de urina.


MEU CORPO ANDAVA EM RUÍNAS

Vil coisa o corpo,
estilhaços,
quando encalha em seus vãos.
Falto de assuntos,
esgotado o jardim de seu tesouro.
A sarna das heras devora
os corredores,
os furúnculos crescem junto aos pêssegos.
Jovens ruínas junto a velhos cães mofam.
Pedreiros ativos,
demolições da alma a domicílio.

O corpo em destruição junto aos ancoradouros,
barco senil, o corpo destroçado em construção.
O corpo esfarrapado pelas próprias mãos,
rasgado pelas próprias presas,
afogado na taça do próprio sangue,
por uma tormenta azul
do grifo na cozinha.
O miserável corpo entrado em séculos,
posto na adolescência de suas ruínas,
entrado no bazar, oh teóricos,
dos trastes pensantes,
no mercado de pulgas dos corpos.
A pátina do corpo, como a caspa dos edifícios,
somando fuligem ao ouro sem sustento.


OS PUROS

A maior pureza é abjeção.
Não há dúvida.
Porém, consolo, oh puros:
Tampouco os abjetos e os vis
o são de todo.
Às vezes cheiram rosas
e acariciam cordeiros com sinceridade
ou beijam crianças
e dão sua vida pela Revolução.


PÉ DE PÁGINA

Para o arquiteto Francisco Javier Cossio, leitor de Proust, no
nonagésimo aniversário de Os prazeres e os dias.

Diz Painter que Proust passou em sua casa
uma infernal, terrível temporada
de certo culto ao “bom gosto”,
porém nos últimos anos, enchia as estâncias
com objetos horrendos, ainda que amados, deformes
e sagrados, que falavam de seus mortos,
de sua infância, de seu tempo perdido.

Aquele que não pode, com sua carne e humores,
encher sua casa,
costuma sair com frequência às cantinas
– em outro tempo esplêndidas –,
do centro e dos confins desta errática cidade.

Porém, se é triste abstêmio,
costuma também infestá-la com coisas de outros mundos,
que transbordam estantes
e impedem a visão dos livreiros
na pobre morada, que é casa do ausente.

E uma casa só se enche com o que a habita.
Uma casa é uma alma que habita em sua habitante.
As pré-construídas belezas – austeras ou suntuosas –,
apenas são galerias de almas alheias,
guarda-roupa emprestado.
E os poemas são como as casas:
devem estar habitados para ser poemas

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!