Giovanna Benedetti (Panamá, 1949)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Dona de uma imaginação portentosa e de profundo sentido linguístico, Giovanna Benedetti é uma profunda conhecedora da grande tradição poética universal, e parte dessa sabedoria para construir uma obra cheia de significados, onde a linguagem se entrelaça com múltiplas imagens, criando uma realidade reconhecível, e ao mesmo tempo uma voz onírica, que mergulha o leitor em uma experiência literária de longo alcance.

Autora única no cenário internacional da poesia em espanhol, Giovana Benedetti recebeu nada menos que seis vezes o Prêmio Nacional de Literatura do Panamá. A sua capacidade criativa é muito vasta e inclui vários géneros literários (contos, ensaios, poesia) e também outras disciplinas artísticas tão sugestivas como a escultura em cerâmica ou a arte gráfica.

Después de los objetos reúne quase toda a poesia de Giovanna Benedetti escrita até à data, incluindo alguns poemas inéditos e outros publicados em revistas ou jornais. É uma ocasião única para mergulhar no sugestivo universo poético da autora, passando pelas primeiras palavras até chegar às últimas.

RAQUEL LANSEROS
Fragmento do prólogo de Después de los objetos, 2018


ÁSPERAS CONCORDÂNCIAS

Apuram-me os contornos
de uma cruel correspondência
que lenta e sempre torpe persigo com as minhas letras.
E digo cruel, maldita seja, porque me constrange:
Tanta luminosidade… e eu sem sinais!

O ruído das luzes complica a experiência.
Espessa os matizes coloridos das formas;
e há um sabor que sobe desde o ventre à saliva
e se propaga aproveitando sua máquina alegórica.

Ao final as sereias emergem fatigadas
machucadas pela cólera da água entristecida;
e mergulham judiciosas, como delfins sem lastro,
pelos úberes espirais dos cornos da aurora.


LOLTUN, A FLOR DE PEDRA [1]

Como vulvas na rocha
como gargantas sensuais
como espeluncas vazias
funis subterrâneos
ventres escavados
de adegas rupestres
como cópulas
para furto de lubricidades
como covas profundas
de quartzo e silício
abrigos
túneis
silenciosas catacumbas
até os ímãs saxões
do penhasco vivo
blindadas de ferrugem
e fermentos
dos mármores
com sibilinas artérias
como veias recônditas
por onde circula o tempo
por debaixo
da terra
como sótãos imensos
por onde passa a sombra
a luz das entranhas
em seus antigos
cálices de ossos
e de água
como gretas de mina
onde suam os cristais
de carvão e quartzo
e destroncam
os abismos
de esmeraldas
como hortos proibidos
como uma recorrente
rachadura
do espelho:
Loltun
como uma flor consciente
imaginada em pedra

_____

[1] Loltun: “flor de pedra” na língua maia. Nome de uma caverna de iniciação ritual localizada na península de Yucatán, México.


HÁBITOS DE PELE

Se alguma vez
acabo de cair em mim
– e se esta lua que me esgota ainda me sustenta –
deixarei de cavalgar como acrobata fora do tempo
derivando para outro mar com minhas folhas e panelas.
                                   E se esta voz que não se aquieta
                                   mesmo que eu permaneça imóvel,
insiste em oferecer-me em transgressão, sem argumentos,
limparei minhas prateleiras de cobras de duas cabeças e papa-figos
e declararei minha fé na ciência infalível e vice-versa.
                                 A mais à frente, do outro lado
                                 (se ainda me restar fôlego)
continuarei com a lenda de mina teimosa epifania:
errática, condensada, solitária, tortuosa…
astutamente maquiada pela cólera do vento
porque há hábitos de pele que não morrem nunca.

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