Margarita Laso (Equador, 1963)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Nestas imagens, tenho a memória da minha avó. Ela está convalescendo de uma cirurgia agressiva e, embora minha consciência esteja muito curta, meu coração está me cercando. Ela já tem os cabelos completamente brancos, uma velha escurecida pelo sofrimento e pela doença. Receba a sua visita pela porta de vidro. É o médico. Ele também tem cabelos crespos, um adulto muito alto. Estou ali com minhas mãozinhas cheias de objetos inomináveis: simplesmente não me lembro deles. E de repente ele nos cumprimenta. Nós duas temos esse nome com pétalas brancas. Margarita, ela diz, o mar está lindo. Agora parece que vejo o lenço de flor de laranjeira que nos envolveu, foi o próprio vento que veio com o Doutor Tello. E meu nariz, uma partícula de canguru, uma cartilagem mínima içada, e a certeza de que esses elefantes seguem no passo lento de minha avó. Eles são como quatrocentos.

Minha jornada é esta primeira história. Minha avó e eu somos acompanhados pela captura de uma estrela. São as primeiras linhas que me oferecem um cosmos ao qual se pode ir, algumas palavras numa caixa de música.

Escrever, em sua vocação inicial, era um fio feito de imaginação e, ao mesmo tempo, de necessidade de habitá-lo. Escrever era inventar, era tentar colocar no mundo um artefato, um objeto que serviria, que iluminaria, traria para o benefício dos outros algo que, por exemplo aparafusando, nos permitiria ver no escuro. Eu fui movido pelo desejo de ser a própria inventora, aquela que faz uma poção como um mágico, aquela que carrega uma lâmpada incrível na mão.
Mais tarde, no mundo das palavras, tive o desafio da carpintaria. E o prazer e a impaciência: a voz como uma linha de pescar, a trama medonha de uma rede, cuja realidade final é, de novo, a captura. O que estava em movimento, pare; o que estava na sombra, faça-o brilhar como uma pedra molhada. Mesmo hoje, escrever tem a ver com capturar.

A poesia é uma fonte infinita de signos e significados, desenhos assinados e ritmos. Embora envolva o que é inatingível, se durar alguns segundos em nossas mãos, pode nos dar algum conforto.
A verdade é que me encontro no meio de uma busca como se algo de valor inestimável e imperceptível tivesse se perdido. Nem tudo funciona com palavras, linguagem. Existe a respiração, existem as mãos no barro, as agulhas capazes de unir. Essas etapas estão no palco que compartilhamos.

Eu gostaria de unir as nuances dessa voz. Quando contado na folha, procura as sutilezas; quando dito no auditório, suas ressonâncias têm outros suportes, é menos uma tela do que uma vibração. Mas isso dificilmente é visto, não é categórico.

Sempre digo que o poeta trabalha com a palavra e o cantor com a letra. E acho que os letristas entendem uma forma diferente de comunicação. As músicas constituem um mundo de registros acessíveis e não costumam usar complexidade. Embora, em alguns casos, os textos poéticos o incorporem. A riqueza de uma sintaxe quebrada faz parte do trabalho criativo. E às vezes é literatura para iniciados. Ao contrário da crença popular, muitos poetas cantam, acompanham as pessoas para viver e consolam. Publiquei rimas e métricas em pelo menos um texto por livro para me lembrar de que as canções têm um propósito em si mesmas. E talvez para aproximar essas duas bagagens, esses dois destinos.

Mas teríamos que aceitar hoje que temos sido ingratos com os songbooks e reconhecemos melhor o valor poético das canções deste século. Não só no trabalho de fazer poemas musicais como alguns autores espanhóis chamam esse desejo, mas também nesses cantores-compositores que proclamam suas verdades filosóficas, talvez letradas, a partir de belos e às vezes complexos versos. Nem todas as músicas têm circulação de massa e existem canções para adultos.

Embora reconheça minhas primeiras influências nos versos cantados, nos poemas musicalizados (alguns poemas modernistas são corredores famosos), hoje gostaria de nomear César Dávila Andrade, seu enorme espinho, o colapso improvável de seus poemas, de suas histórias; a Jorge Carrera Andrade, o luminoso. À separação do meu querido Jorge Enrique Adoum, professor e amigo. À volúpia do pródigo Efraín Jara Idrovo. Ao querido Julio Pazos, primeiro professor e depois compadre, poeta cujo olhar admiro muito. Dessa mesma geração são Iván Carvajal, Iván Oñate, Ana María Iza, Sonia Manzano.

Entre os poetas mais próximos do meu ano de nascimento estão María Aveiga, Edwin Madrid, María Fernanda Espinosa, Cristóbal Zapata, Luis Carlos Mussó. Esses poetas que tenho seguido e que considero valiosos são dos anos 70: Aleyda Quevedo, Ernesto Carrión, Xavier Oquendo, Alfonso Espinosa, César Eduardo Carrión, María de los Ángeles Martínez, Juan José Rodinás. E um notável poeta, nascido em 1993: Juan Suárez Proaño.

MARGARITA LAZO
“Imágenes de la memoria”, escrito para este proyecto, 2020.


FERIDA DE TE VER

morres
são finos os linhos que te envolvem

folhas e peles das bíblias
línguas dissecadas pelos mares
mares que rezam e regressam
relevos de anjos adultos

morres
porém essas talhas se agitam
por uns anos a mais

no tempo do tempo
por uns anos a mais
apenas são um passo silencioso de suas pálpebras

porém essas talhas cantam
e ainda se erguem em silêncio

morres
és somente as tuas feridas
e em tens lábios entreabertos
um espelho talhado em um cristal da pequena salina
uma folha de sal
a escama da morte

a talha contém a dor da talha
a luz do atelier sobre o discípulo
a marca cinza e gordurosa de sua mão
as goivas e as gemas estilhaçadas
outra boca entreaberta

morres encarnado
porém aqui eu tenho a ti
vívido vivido
vivinho
ferida de te ver
feito de madeira


A TERRENA

I

mais terrena que o pó, tu
material de canteiro ou gruta
precioso mineral
térrea madalena

trazes
sandálias azeites azeitonas
pele de azeitonas
lavas os teus cabelos
na fonte celeste do vento
na tormenta da montanha

como é a tua cabeça, madalena?
uma negra rosa rústica arisca?
um pedregulho com anéis vermelhos?
uma lito-lâmpada dourada?

terás algum dia um crâneo nu
porém hoje
teu cabelo te veste como uma cabrita lavrada
no mogno
teu cabelo te segue desvanecendo teus passos
no pó
teu cabelo madalena
ilumina a pedreira
e a tempestade

está feito de fios enferrujados
com eles entalha as lápides

II

entre as lápides e tu
apenas o abismo
rubra madalena

não me deixes de cara para o deserto
apaga a vela de tua roupa
a fogueira a óleo de teus passos de mirra
o lume de teus dedos de azeite que forma
com a tua mão uma fina coroa
a canção de tua língua apaga

rubra madalena
rubra caminhante de magdala
não me deixes de cara para a cova

o animal noturno
apaga


RODA GIGANTE

sobe aqui a meu lado
eu ganhei para ti esta cabine que balança

a roda gigante artesanal
nos levará a apenas alguns metros
porém uma diversão nos espera
em suas colunas giratórias

sobe aqui
verás que é apenas uma imensa instalação temporal
em breve erguerá seus quiosques insignificantes

uivos felizes tocarão as cobertas de zinco
e serão vertigem ao olhar e à lembrança

o ouvido poderia confundir o colar do carrossel
os cabelos ondulados de ouro e madeira
as risonhas pérolas infantis que galopam

sobre aqui
entre esses pequenos fogos de cachos
e as maçãs manchadas de cereja
deixa que girem os taciturnos
olhos que trouxeste

isto eu ganhei para ti
uns minutos de amorosas colunas
e o beijo do sol
morrendo em meu dorso
outra vez outra vez
outra vez

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