Márcia Pfleger (1972) é escritora, tradutora e jornalista brasileira. Lançou seu livro de estreia, Caneca de Café com Versos (Editora 7Letras), em 2015. Tem poemas e contos publicados em revistas, jornais e sites de Artes e de Literatura. Foi um dos destaques citados no “Dossiê Woolfianas – Mulheres que Escrevem nos Séculos XX e XXI”, organizado pela Universidade Federal do Paraná-UFPR, e finalista do Prêmio Off Flip 2021, na categoria Poesia. Integra também a coletânea nacional As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (Editora Arribaçã). Seu segundo livro, Camélias Afônicas, é um e-Book com selo das Edições Marianas, que apoia a escrita produzida por mulheres.
TINHA ALGO QUE NÃO SEI
Tinha penúria ao pensar como as
coisas estragam…
Como meias de seda desfiam a despeito
do esmero sem unhas evitando
pontas arpões escorpiões
Tinha uma espécie de guelra:
a umidade cancela o viço
das coisas mais bem guardadas (eles sabem)
Tinha algo a ver com joelhos
e sua vulnerabilidade
(os sentimentos têm algo a ver com joelhos)
Tinha uma espécie de hábito crepuscular:
olhar as nuvens espumando sangue no horizonte
antes de cortar os pulsos
outra vez
PICNIC UNDERGROUND
Cortar fora os olhos com um volteio de krav magá.
Nem distar pela janela as mangueiras ensuquecidas no pomar alheio
nem ejacular os olhos pelas pernas da filha do vizinho
(ela usa a cerca elétrica como meias de redinha)
impossível – impossível tocar.
Gula sexo e inveja:
a voracidade do que entra e do que sai pela boca é a mesma.
Eu faria um turn out com um fusca 67
Acrobacias numa árvore de mangas só pra espiar pela janela
Jogaria uma pedra da vesícula com um bilhete enrolado convidando-a para um picnic underground no porão do bar.
Mas aí a tia Dilce (sim, ela mesma, mora comigo, o sobrinho amado) esticaria seu cabo submarino da garganta até meus ouvidos
– esquema de injetar o grito no córtex, you know? –
e 20 helicópteros em conjunção solar derrapariam no espaço
com morteiros apontados pra mim.
Sustente uma ereção com isso, quem?
Agora o relógio mingua perdendo segundos de sangue gota a gota
tac tac tac (num balde esmaltado).
Todos os olhos do mundo em cima de mim e a tia Dilce me arrastando pelo piercing do nariz.
O mundo – e a tia Dilce
O mundo – e a tia Dilce
O mundo – e a tia Dilce
Afinal quem se importa com uma paixão adolescente pela esfinge que usa meias de redinha para apanhar meus olhos do tamanho de goiabas?
– “O mundo”, a tia disse.
(Capítulos II e III geminados): Fazia uma manhã quase helvética quando o pequeno urso saiu a passeio. O dia estava lindo para uma selfie e todos querem fingir uma prainha só pra quicar nas redes sociais neonazicolunistas.
(Epílogo): Depois de arrancar discurso até dos capitólios, encho a mochila com os cadernos encouraçados onde escondi as bobagens que…
A vida brincou de mim enquanto eu brincava ser uma poça d´água.
Na casa ao lado, você estará à janela sem nunca saber o nome de todas as constelações que batizei por teus olhos…
Do lado oposto
estou eu
indo embora.
EPICENTRO
meu coração tem
alguma falha tectônica
só assim para explicar
o tremor com 7 graus
de magnitude na escala
Richter cada vez
que você passa e me sorri
devolvo bobamente
aquele sorriso sem esperança
dos devastados…
MOÇA DO BRINCO DE PÉROLA
talvez eu brinque de você
com suave ironia
e um cachecol no pescoço
deixe você ficar no sofá
com um violão vira-latas
desde que não roa meus sapatos
aqui é tudo pequeno, quarto
conjugado, quisera loft
numa garagem velha
não tenho paisagem marítima
da janela
mas a gente pode ver a lua
afundando num aquário
NÓS A JOGAREMOS NO LIMBO
enfebrar uma verdade na gaveta
esquecê-la
até que o suor e a malemolência
a deixem pronta para o torno
nós a jogaremos no limbo, oh sim
nós a torturaremos
à casta inofensiva
dos eunucos
um que estaria bilhete premiado –
não fosse essa compulsão
por cacos de vidro
eu tenho matado verdades dentro de mim
há largo tempo da mesma maneira que você,
quando diluímos o café e se mede em silêncio
a extensão do que não fomos…
(por solidariedade de falidos ninguém
tocará no assunto)
tudo isso passa pela nossa cabeça
enquanto olhamos para fora
num dia muito cedo
e muito escuro