Curadoria e tradução de Floriano Martins
María Virginia Finozzi (Salto, 1995). Vive em Montevidéu e estuda Educação Social (IFES-CFE), embora também tenha cursado Letras (FHCE). Obteve o segundo lugar no Concurso de Poesia Pablo Neruda (IMSJ, Fundação Pablo Neruda de Chile, 2018) e uma menção no Móvida Joven (IMM, 2018) com sua coleção inédita de poemas Manojo de notas estériles en un smartphone. Além de seu blog (http://pajarodevianteestrujado.blogspot.com.uy/>), publicou alguns de seus textos no volume 12 de Binah – antologia de poetas nocturnos (2013), na antologia dos escritores ibero-americanos Liberoamérica. 80 poetas contemporáneos (2018) e nas revistas Liberoamérica e Washington. Em 2017, participou do Décimo Encontro da Escritura, organizado pela Prefeitura de Maldonado, em nome de En el camino de los perros. Atualmente é editora e referência do projeto. Junto com Romina Serrano faz parte da dupla perfomática Las Bang Bang. Virginia Finozzi foi uma das autoras mapeadas na antologia virtual de poetas ultrajovens em 2016. Faz parte da equipe editorial do coletivo desde 2019.
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Reconheço uma descomunicação afetiva na condição do ser humano. Acredito que amor, encontro e comunhão são uma coincidência perfeita e que entendemos como um milagre. Mas não acho que seja natural nos relacionamentos, não porque as pessoas sejam maliciosas ou egoístas por natureza, mas porque somos movidos por histórias pessoais diferentes e interesses e intenções geralmente conflitantes. O que acabei de dizer pode ser transportado para minha própria história como um animalzinho sujo apegado à vida. Apegados à vida porque somos obcecados pelo sim entendido como um encontro real.
[…]
Para além do culto ao cânone e ao under, o que me vem à mente é a emoção transmitida nos versos ou na obra de arte conjugada. Se um poema de [Idea] Vilariño e uma estrofe de qualquer canção de 3 pecados me fazem chorar e me aproximam da cristalização do que considero esteticamente necessário (aquela poética oculta), não consigo encontrar maiores distinções entre um e outro.
Eu não nego o culto e o cânone, na verdade, eu também o consumo. Mas procuro sempre estar aberta a expressões artísticas independentes ou não hegemônicas que me façam sentir viva e com as quais identifique minha humanidade. E, nesse sentido, poderíamos também apreciar conversas, objetos ou detalhes triviais que nos aparecem no dia a dia e que se movem estética e poeticamente sem qualquer intenção, à espreita da qualidade poética de que falei acima.
MARÍA VIRGINIA FINOZZI
Entrevista a Romina Serrano, 2019
CORPOS COMO METÁFORAS APUNHALADAS
Está mais fácil do que pensei
há uma ideia cristalinamente genial
batendo a cabeça nas paredes de minha mente
eu lhe acenderia a luz
porém não alcanço o interruptor
e não consigo parar
por os pés na terra
não vou articulá-la em palavras
ou torna-la discurso com ou sem lógica
porque ninguém vai mesmo escutar
é tão duramente abstrata
e não se pode tocar
eu vou lhe atar uma corda no tornozelo
e fazer com que realize
ideias concretas fáceis transmissíveis
envolventes como corpos
os gestos das pessoas quando se entendem
e se reconciliam e se abraçam
e a pele também compreende
e se torna tangível
às vezes.
JARDINEIRO DO ÉDEN OU FORASTEIRO
E então pergunto
há lugar neste verso
jardim do Éden ou seu inverso
Eu
aquela que chegando perene
ao espaço concreto
onde a nomearam
se ri
Eu hoje esta noite
imploraria sem vergonha alguma
aos traficantes das agulhas do relógio
a eternidade de tua coluna vertebral
observar-te assim diminuto
ofuscado carpindo
os caroços de meu baixo ventre
Eu
que desde esse dia
desenvolvi um estranho interesse botânico
tendente à obsessão vegetal
– o verde saboroso meu amor esperança
Úmido sensitivo propenso a dar frutos –
Receberia teu ar quente
como esta brisa de janeiro
te enxaguaria os pés e as culpas
lamberia tua fronte salobre
e poria a mesa e o pão
Amassaria em teu desejo meu nome
de trigo e cevada
cordeiro no mel
enquanto sujeito teu coração
com minhas mãos em chagas
e o ponho a descansar
à sombra daquele arbusto
O RIO QUE TINHA OUTRO NOME
Amei em terras estranhas, fiz amor em águas salobres certa de que temia e odiava qualquer mar. Minha casa era a ponte (debaixo da ponte era feliz a menina que foi minha mãe), a doce água de um rio e sua ribeira eram a única coisa capaz de me conter. Caminhei pela praia na noite e temi que meu amor me afogasse nesse sem fim de caldo, nessa sem fronteira que era negra e em cada onda rompendo-se via os dentes dos cães ferozes. Certifico-me de que só sei nadar em água doce, de que posso não morrer sempre que do outro lado haja outra ribeira.
As melhores fotos de minha infância foram feitas por meus pais na costa do rio Uruguai, entre pedras e paredões pedregosos desses hectares que eram a nossa salvação. O rio afogou uma parelha de seres queridos e até mesmo devolveu a meu pai um cadáver de vinte dias apodrecido (alguém de Entre Ríos baleado pela polícia), e mesmo assim todos os homens de minha família compraram lanchas e encalhar na metade do rio a escutar o nada era o que lhes dava uma paz sem redes.
A família
meu pai
minha mãe
um machado
meu avô
cortava cana
as mãos negras
de melaço
seus dedos doces
lambo meus dedos
gomados
em teu sangue
lavo com água
salobre
minhas mãos
tuas marcas
um mar distante
da água clara
do rio que
tinha outro
nome:
(…), nesse sentido, poderíamos também apreciar conversas, objetos ou detalhes triviais que nos aparecem no dia a dia e que se movem estética e poeticamente sem qualquer intenção, à espreita da qualidade poética de que falei acima.
MARÍA VIRGINIA FINOZZI
Entrevista a Romina Serrano, 2019