3 Poemas de César Dávila Andrade (Equador, 1919-1967)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Entre os primeiros redemoinhos do espírito parece girar o da imaginação, como uma virtualidade na qual são gestadas as titubeantes criaturas através das quais a vida circundante se torna sonho interior e se alimenta do mais cálido do sangue. É um tear em forma de vértice, dotado de uma grande complexidade porque sua trama extraordinariamente móvel tece os fios da turva existência com as linhas mais luminosas da cascata espiritual. Assim, seu produto é dual a cada instante; e conforme ascende o ser e se polarizam suas secretas eleições, toda a textura se torna imprevisível.

É neste ponto da liberdade criadora pré-consciente onde se insinua a semelhança do homem com os deuses. Constantemente, mesmo que o ignore, é ele um criador de imagens que lhe afetam de forma sutil e, não obstante, decisivamente.

[…]

Se considerarmos que nosso vocábulo “imagem” nos vem da “imago” latina, teremos descoberto a via filológica de um novo esclarecimento, porque sabemos, ao mesmo tempo, que a “imago” é a obra do “mago”, do operador de magia, em seu campo natural, a imaginação.

[…]

Em todos aqueles poetas em que predomina o homem claro-escuro, apegado à noite genésica, com a metade de sua alma, pelo menos, se constata uma marcada tendência a penetrar e dominar a alma das coisas, como criadores. A tentação de transmutar os corpos e as substâncias é poderosa neles, e continuamente se valem da evocação instintiva, de desordens provocadas, de força exercida sobre o lado oculto das coisas.

Em outro lugar estão aqueles que de algum modo sabem. Baudelaire preconizou, com a lucidez que lhe era característica: “É mister querer sonhar e saber sonhar. Evocação da inspiração. Arte mágica”, aponta em seu Diário íntimo. Rimbaud, em sua aprendizagem de mago ou de bruxo, através da “desordem dos sentidos”, escolheu um caminho espúrio, e sua empresa de criador se alimentou da agonia e do desastre vital do homem.

[…]

Se torna imprevisível o que o poeta e o homem em geral podem alcançar por estas vias que, em último termo, conduzem a uma visão supra-sensual do mundo, livre dos elementos da personalidade e da miragem do tempo. Devemos unicamente reconhecer que o movimento de autoconsciência em poesia está em pleno desenvolvimento, e que tudo o que se consiga neste sentido será para esclarecimento da visão dos autênticos investigadores, e não é difícil que suas próprias obras recebam o toque de um sortilégio hoje apenas discernível.

CÉSAR DÁVILA ANDRADE // “Magía, yoga y poesía”. Revista Shell. Caracas. Setembro de 1961. Reproduzido pela revista Punto seguido # 34. Medellín. Junho de 1994.


PROFISSÃO DE FÉ

Não há angústia maior do que lutar embrulhado
no tecido que circunda
a pequena casa do poeta durante a tempestade.
Além do mais,
ali estão as moscas,
velozes em sua ociosidade,
buscando um sabor adúltero
e dá-lhe e dá-lhe voltas
diante das aberturas do rosto mais devotado
à sua verdadeira qualidade.
A luta com o pano obstrutivo
retira-se para as cavernas comunicantes do coração
ou dentro da glândula de veneno entre as sobrancelhas
cujos tabiques são
verticais para o Fogo
e horizontais para o Éter.
E a poesia, a dor mais antiga da Terra,
bebe nas concavidades do dorso de São Sebastião
o sol vasomotor
aberto pelas flechas.
Porém a vontade do poema colide
aqui
e
ali
com a Tela
e escolhe, ainda no escuro, os objetos sonoros,
as lutas de asas,
as pérolas que pululam na boca do cântaro.
Mas a tela se encolhe e nada que se faça
é capaz de renovar
a agonia criativa do golfinho.
Os peixes só podem ser salvos no relâmpago.


CASA ABANDONADA

(Entrei ao entardecer, com o sol perdido)

O pátio chorava uma estátua vazia.
Profundos cavalos de pó viajavam
para os recantos mais vagos do molde.

Um furo remoto conduzia ao nada.

O vazio entrava com suas multidões
e os seus imensos sinos já silenciosos.

Eu ouvi um passo dado em outro século
e vi em uma cisterna um toco de minha alma.

Um vento branquíssimo dormia recurvado
em uma tela seca de aves esquecidas.

Um relógio jazia em ácidos profundos
e o peso de um pássaro percorria o muro.

Uma menina morta sonhava em um conto
narrado de uma alta janela de névoa.

Um alfabeto viajava para trás,
os dias antigos eram os primeiros

por uma pequena comporta de naipes…

(Em um muro branco, encontrei esta legenda:
A 7 de março, Maria Eugenia morreu).

No alto da tarde flutuavam bispos
com lâmpadas cheias de enxofre e trigo.
No alto da tarde,

E eu não era o mesmo que retornou.
Era um estrangeiro a quem às vezes choro
e no qual já morri…


TAREFA POÉTICA

Dura como vida a tarefa poética,
e a vida desesperadamente
inclinada, para poder ouvir
no grande cântaro vegetativo
uma partícula de mármore, pelo menos,
cantando sozinha como se brilhasse
e se injetando no céu mais escuro.

Atravessamos ruas cheias de sal
até os beirais, e a nossa barba
caía como se tivesse sido apenas
escrita a lápis.
Porém a Poesia, como uma bolota ainda quente,
respirava dentro da caixa de uma harpa.

No entanto, em certos dias de miséria,
um arco de violino era capaz de matar uma cabra
bem na borda de um planeta ou torre.
Tudo era cruel
e a Poesia, a dor mais antiga,
a que buscava deuses nas pedras.
Outro foi
aquele terrível sol vasomotor
por entre as costelas de São Sebastião.
Ninguém pode te olhar como antigamente
sem receber
uma flechada nos olhos.

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