Curadoria e tradução de Floriano Martins
A poesia não tem residência fixa. Costuma invadir os demais gêneros e quase não há grande livro onde não esteja presente. Até se pode afirmar que, em última instância, não literatura mas sim poesia. Seu caráter envolvente, ubíqüo, usurpador, se se quer, faz pensar que ela não é um gênero mas sim, ao contrário, uma presença detrás dos gêneros, uma presença tão insinuante que muitas vezes prefere vestidos que não são os seus, uma presença que se serve de toda as atividades criadoras do homem; como um poder prévio a qualquer classificação. Possivelmente seja uma maneira que tem o essencial de manifestar-se nele.
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Me parece que os poetas podem fazer algo para vincular o homem a tudo o que seu esquecimento relegou, para tirá-lo da distração em que vive, para propor-lhe as perguntas decisivas, para dar seriedade às palavras, para apontar para um viver autêntico. Trata-se de uma operação de resgate, mas para contribuir com ela os poetas devem dar as costas à loucura que envolve o homem, devem lhes falar a partir de uma ruptura, devem ter-se libertado de si mesmos.
[…]
Tão pouco a poesia será assimilada pelas demais formas, pois vive em uma zona do ser que a necessita como seu meio próprio de expressão, uma zona para a qual seguramente a prosa resulta inadequada, não porque seja inferior – o problema é mais de natureza do que de qualidade –, mas sim por não se prestar para transmitir uma energia muito elementar, muito pura, muito livre, que a nada pode se adaptar e que, ao buscar voz, produz esse fracasso que é a poesia. Pois ela é sempre uma inscrição deficiente de algo que nunca chega a expressar-se, uma por vezes esplêndida derrota, que pode deixar palavras principais, porém nunca entregar em seu estado puro aquilo que estava em sua base.
RAFAEL CADENAS / Trechos de uma provável entrevista, s/d. Suplemento Papel literario. Caracas, 20 de abril de 1969. Citada por José Balza em Lectura transitoria. Caracas, 1973.
ARS POÉTICA
Que cada palavra carregue o que diz.
Que seja o tremor que a sustenta.
Que se mantenha como uma pulsação.
Não devo proferir falsidade ornamentada ou colocar tinta duvidosa ou adicionar brilhos ao que existe.
Isto me obriga a ouvir a mim mesmo. Mas estamos aqui para dizer a verdade.
Somos reais.
Eu quero precisões aterrorizantes.
Tremo ao pensar que falsifico a mim mesmo. Devo pesar minhas palavras. Eles me possuem tanto quanto eu as possuo.
Se não vejo bem, dizei-me, tu que me conheces, minha mentira, aponta a impostura, me esfregando a fraude. Eu vou te agradecer, sério.
Enlouqueço por retribuir.
Sejas meu olho, esperes por mim à noite e me vejas, me examines, me sacudas.
AS PAZES
Cheguemos a um acordo, poema.
Não mais te forçarei a dizer o que não queres
nem tu resistirás tanto ao que desejo.
Temos lutado muito.
Por que esse esforço para fazer de ti a minha imagem
quando sabes de coisas das quais não suspeito?
Livra-te de mim agora.
Foge sem olhar para trás.
Salva-te antes que seja tarde.
Pois sempre me ultrapassas,
sabes dizer o que te motiva
e eu não,
porque és mais do que tu mesmo
e eu sou apenas aquele que tenta se reconhecer em ti.
Eu tenho a extensão do meu desejo
e não tens nenhum,
apenas avanças para onde quer que te dirijas
sem olhar a mão que movimentas
e acredita que é tua quando sente que botas dela
como uma substância
que se ergue.
Impõe teu curso ao que escreves, ele
sabe apenas como ocultar-se,
cobrir a novidade,
empobrecer.
O que mostra é uma reiteração
cansada.
Poema,
leva-me para longe de ti.
RILKE
As coisas sabiam, mais do que os homens,
de seu olhar
ao qual se abriram
para outra existência.
Ele os acolheu transformando-as
no que eram, devolvendo-as à sua exatidão,
banhando-as em seu próprio ouro,
pois, o que sabe sobre sua régia condição
aquele que se entrega?
Pedras, flores, nuvens
renasciam
em outro silêncio
para um distinto transcurso.
Seu olhar repousante
jamais chegou a elas com motivo..
Apenas seus olhos queriam.
Agora sentem falta
as pessoas passam correndo, para onde?
As coisas
querem ser vividas.