4 Poemas de Rafael José Muñóz (Venezuela, 1928-1981)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A iconoclastia parece ser a única atitude possível do rebelde. De sua obra de destruição não nascerá senão algo pior, porque o mundo é a projeção de nós mesmos. Ante esse panorama de absurdo, de violência, de decomposição, de apocalipses, cabe tão somente o recuo a si mesmo, até nossa interioridade. É o que tentou Muñóz, em meio a uma explosão de consciência que, ao manifestar-se na literatura, a fez também rebentar. Entre este incêndio de palavras, o poeta alucinado profetiza, invoca as forças energéticas, volta a estabelecer seus vínculos com a natureza ofendida, celebra rituais de morte e ressurreição e se oculta detrás de formulações obscuras que abarcam desde as fileiras populares e as orações mágicas até as chaves que expressam um esoterismo iluminador.

Esta poesia responde a nosso tempo de incoerências e estalidos. É um antídoto para a enfermidade do mundo, porque enquanto o absurdo e as contradições sociais nascem da cobiça e do afã de poder, ou seja, de um tenebroso e perverso desejo de lucro, ou melhor, do dogmatismo político propiciador de intermináveis limitações, censuras e queimas de bruxas, El círculo de los 3 soles constitui um ato gratuito de resplandecente liberação pelo absurdo, que se imita em ficções barrocas de imaginação delirante: a ficção científica, os cálculos astronômicos, os textos bíblicos, os eruditos diálogos das novelas de divulgação científica, as historietas cômicas das guerras interplanetárias, as descrições botânicas e zoológicas ou de novelistas como Julio Verne e inumeráveis outras formas de alienação literária e mental próprias de uma civilização em quebra como a nossa.

Estes poemas destroem, de certo modo, nosso tempo e as medidas cronológicas e historicistas do Tempo. Se o sentimento da morte constitui um valor permanente, uma constante e uma reiteração nesta obra, se adverte uma ruptura, talvez mais espontânea que buscada, com a noções da realidade e as formulações de um pensamento racionalista, lógico, historicista, discursivo.

[…]

O próprio autor indaga: “No coração de um mundo cuja matéria se desmaterializa na escala infra-atômica, sob forma de energia imponderável, a bordo do espaço que se desespacializa en escala do Cosmos, suspensos entre dois espaços referente aos quais os lógicos, se acaso existem, constroem silogismos sobre o princípio das quatro perpendiculares, temos acaso o direito de falar de positivismo e de racionalismo? No ciclo dos conhecimentos humanos, esses termos resultam liquidados e pertencem sucessivamente à paleontologia, de modo que tão somente um espírito primário pode se converter-se em seu defensor”.

[…]

Seu trabalho parte de seu conflito psíquico nunca resolvido, porém entornou na realidade específica da escritura, de uma escritura que antecipa outros experimentos iguais por chegar. Em definitivo, assim como Vallejo não tinha outra forma de expressar sua vida senão com a morte, Muñóz transferiu para a escritura essa função final, e cultivou, adiantou, precipitou sua morte neste jogo de fantasia inusitada, de intoxicação física contínua e suicida. Para expressar sua morte Muñóz teve a linguagem. Enquanto subsista a espécie, ficam estes signos atrevidos que revelam, mais do que uma realidade histórica, uma alma que delira, mais do que uma biografia, a fantasia da própria.

JUAN LISCANO / “Dentro del círculo de los 3 soles”, ensaio incluído em Descripciones. Caracas, 1983.


VISTO PARA OS ASTROS

Visões a base de cogumelos,
A base de olhos de cobra,
de olhar para o número 1 em um astro;
visões de nada ver, apenas celestiando,
chovendo como se arrastasse uma corda seca.
Vamos ver mais longe, vamos fechar os olhos
vamos ficar sozinhos,
como aquele que ressuscita um morto;
vamos soar para todos esses escapulários
no apontador de lápis descascado,
vamos sonambulismar
com os mistérios trús trús.
Vale a pena esperar
enquanto o lindo visto
de seu coração temperado
alça o voo,
como se cantasse no nevoeiro
uma canção de ventos e pedras.
É preciso esperar o quê.
Vamos de luto e fiquemos sem botões.


FÚNEBRE TAMBÉM

Não posso suportar, as minhas lágrimas correm como um cervo,
o dia está cinza, parece o tipo de letra garrido;
hoje me pergunto se sou um rei ou um bispo,
hoje, que estou vestido com essas fitas roxas,
quando digo a mim mesmo: muito bom, senhor sonhador de máquinas esquerdas.

Não posso suportar tanto sinal estranho diante de mim,
essas paredes que arrastam rostos e vermes que riem de viver
e que parecem papéis de blusas torcidas pelo café;
não posso suportar nada disso em meus olhos,
melhor ter um coração de índio sem argila,
melhor sentar naquela pedra e olhar para lá.

Quantas faltas reunidas cometi?
Quantos passos insondáveis eu dei em direção ao dorso mortal?

Não sei, hoje é uma quinta-feira cinzenta, atordoada com tristezas,
hoje viverei parado na outra esquina, à direita da morte.
E contarei meus horizontes, tenha certeza,
e finalmente compreenderei que não são mais do que três:

o domingo, quem reza e quem caminha.


AS SETE CABRITAS, O PÁSSARO DAS SETE CORES E OS SETE PECADOS CAPITAIS

O vento chega outra vez e se põe feito um peão
em seu cabresto de anchulina nos apressamos
quando tomávamos água sem dor.

O vento chega, me traz sons do mar,
batalhões de caranguejos, vislumbres de algas
e as miragens das altas solidões noturnas.

Disfarçado eu o vejo com seus pássaros azuis,
quando se enrola como um michê ao amanhecer
e faz com que se evaporem as alcânforas em cruz.
É o vento que traz suas malas,
é ele, olha o brinquedo dele,
veja como vira a minha picape Austin 1958.

Seu horizonte tem a ver com o céu,
com as Sete Cabritas, com o Pássaro das Sete Cores,
com o Arco-íris também, e com os Sete Pecados Capitais.
O vento, se passarmos por ele, Krist morre.
Se o deixarmos em seu círculo, ogro nasceu.
É que ele já veio, espero que tenha trazido
seus trinta e sete vagalumes.


COMO UM ÍDOLO SENTADO DE COSTAS

Eu me sinto como um pequeno ídolo sentado de costas,
costurando com seu velho fio ricas madeiras, graves axilas;
eu me sinto como aqueles seres silenciosos que andam sem honra,
e têm chaves e tristezas
e dizem orações na solidão e em suas memórias.

Ai, eles são assim, trovejam cânforas
como saídas da morte, trovejam grossas
e negras safras;
mugem com a tarde, como bois na hora crepuscular;
eles regressam de todos os pesares em seu pesar.

Esta é a gente de pele velha, de parafusos desconhecidos,
de mangas de camisa com cães e bengalas estranhas;
a gente do meio-dia, sob a grande árvore da chuva,
aquela gente das bobinas para chorar, os sólidos
empregados subindo e descendo escadas e abrindo longas cartas.

Se eu pudesse viver como eles, coçando meu estômago,
amado por todas as mulheres e olhando para os meus dedos
como se fossem pessoas dentro de mim, que conversam;
se eu pudesse, como eles, estufar meu tórax,
tomar café em qualquer bodega de esquina
e fingir que eles não existem:
isto seria realmente espetacular
isto moveria minha sujeira branca para os túneis.

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