Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils
Marcos Rivadeneira Silva (Equador, 1963). Poeta. Autor de livros como La brazada final (2014), Fragmentos (2018), e La silla turca (2020). Prêmio Nacional de Poesia Paralelo Cero 2014.
*****
Venho de uma terra de profetas que leem o futuro no oráculo de uma silhueta nua. Eles predizem o porvir no espelho de corpo inteiro de qualquer quarto. Venho de uma terra comprada com pedaços de vidros coloridos. Onde as crianças constroem castelos de areia para resgatar donzelas dos caranguejos e se esconder das ondas do entardecer sob as ripas de espuma flutuante.
Venho de uma cidade cercada por um coro de navios que protegem os amores perdidos. Minha terra é verde e contígua ao estado ideal de uma república na nova ilha de Utopia criada em 1516. Venho de uma terra alheia aos ponteiros dos relógios, onde a luz não se esforça para renascer em frutas vertiginosas, botões de buganvílias ou saias plissadas de meio curso. O sol é um deus distante da realidade, assim como as planícies, os rios e o teu olhar.
Venho do bairro do natural, não da natureza de Rousseau, mas do natural, da alma que percorre o caminho dos livros palavra por palavra, amando, sentindo as desordens dos homens. Meu povo tem história gravada em pedras, pintada em desertos, tecida em quipus e ordenada como calendário sagrado, assim como se ordenam as cartas de amores distantes, indescritíveis.
Vir do povo da infância às horas petrificadas, do balanço às borboletas doentes, do seu olhar íntegro aos escorregadores corroídos. Vir do mundo da magia para o pesadelo incerto é fundir-se com os monstros nos esgotos. Vir do ventre de minha mãe, de todas as mães ao desperdício, de todos os pais ao desconsolo, é permanecer insensível nos trilhos suburbanos. É deixar-se cair do subsolo, é mostrar-se nu na praça de touros dos deserdados.
Eu venho de uma terra mestiça onde as mulheres agradecem à vida, os poetas vivem em ilhas negras, onde os militares são uns filhos da puta e as putas organizam marchas de protesto. Minha terra abrange toda a cordilheira dos Andes, a selva amazônica e a pampa, as ilhas Malvinas e Galápagos, as baleias que voltam a parir no trópico, os golfinhos rosados de rios virgens. As crianças amigas de piranhas e médicos bruxos que curam com plantas.
Minha terra é uma zona marcada pelo arco-íris, desfaz-se em chuva como algodão doce e as pessoas vivem com ídolos de papel envelhecido. Venho de uma terra que não tem fronteiras e está desenhada no mapa de todos os sonhos dos homens.
MARCOS RIVADENEIRA SILVA , 2015
OS RELÓGIOS
Vi o fantasma se alojar entre minhas carnes,
em meu esqueleto.
Uma noite sujeito ao encosto que acalenta,
sem pesadelos ou sonhos mal-humorados,
limpo, transparente, íntimo,
está crescendo o fantasma
que depois serei.
Agora sou uma entidade melancólica,
que se deita com ponteiros dos segundos
que escondem segredos,
como se fosse possível arrancar-lhes
o tempo permanente, silencioso e hipócrita
com que embalam.
Os relógios têm seu tempo
e neles, como dizia Ernesto em seu Túnel,
está o tempo das serrarias,
aqueles que marcam o ritmo do universo,
que não é o mesmo tempo
que levo para me levantar,
pegar o metrô, sair para comprar pão,
parar de te amar, por exemplo.
O relógio insone,
aquele que me viu de relance
quando nasci em um fantasma
que agora se aloja em minhas carnes
em meu esqueleto,
esse relógio que mata com seu marca-passo,
ficará no mesmo lugar
para que eu o olhe
quando minhas carnes forem retiradas de mim
e eu fique ali parado
da mesma forma como rio agora,
com este fantasma
em que estou vivendo.
NÃO É AMOR ESTA RESISTÊNCIA
Abro os olhos, cai uma pedra
Soledad Castresana
I
Faltam-me alguns corpos
que não conheci, os que estavam antes,
as dúvidas, as prateleiras
e os ressuscitados no final dos estribilhos
em orações.
Alguns mortos, não este corpo
que ainda respira contaminado
este corpo que resiste ao esquecimento,
a estes olhos que já não têm mares
nem chuva, nem olhos
para te reconhecer se encontro na vala
alguma brisa que me alerte com o cheiro de tua fuga
como foge a tarde sobre o oceano.
As vezes que a cinza se confunde com a terra
posso recriar algum gesto perdido
alguma piscada cotidiana de mulher imóvel
na sala de estátuas de mármore
do museu da minha memória.
Não é amor esta resistência
este dispersar pedaços de vidro no caminho
onde antigamente caminhava descalço.
Porque o amor está vencido
crucificado, jogado de lado
e amarrado com torções de anzóis
na consciência.
Agora, Amo o cristal com seus vívidos fios
de água no inverno.
Amo a escola municipal com seu uniforme
de paletó azul que já não existe.
Amo o arco-íris que nunca está
quando é necessário.
Amo a janela do trem
que me levou a Granada
e a imagem de Camila Charry com seu cabelo vermelho
alimentando cães de rua.
Amo as lâmpadas que titilam
no meio de um beco iluminado
por poetas.
Amo o quadro do Guernica no Museu
Reina Sofía.
não é amor esta resistência
sinto falta do aguaceiro torrencial de teu corpo, sim,
mas não é amor esta resistência
apenas saudade.
II
E voltas com teu antigo manto de defunto
com o castigo da carga alimentada
profundamente pela ressaca da mentira,
vens do porão da terra
através da longevidade da história,
trancada com grades de enxofre
e alimentada com fruta podre
do mendigo dono de outros beijos.
E regressas
como regressam os fantasmas traiçoeiros
invocando longas cruzes no meio da noite,
assim a noite com seus ventos etéreos
assim a floresta com seus lamentos
e a folharada que não cessa
e ri com o sabor amargo
como rangem os sonhos quebrados.
Regressas para roubar de meus ouvidos tuas palavras
para trocar as risadas de outros tempos
pelo obscuro silêncio da noite.
Assim criei esta caverna de animal dolorido
onde se escondem as aranhas dos rituais
esta caverna de alma grande aprisionada por delírios
Ah, se pude te amar no fervor da batalha
mulher que esculpe os gritos em tuas costas
que no final de tudo te foste contendo
os soluços que guardei em minha alma
para continuar teu pranto
quando os portais se fecham
ou as tardes como agora, se lavam
com a goteira perene que atravessa esta caverna
de olhos de mulher encarcerada.
III
Assim como os conquistadores
ancoraram seus crânios verdes
ancoraram em minha angústia os ideais
e sejam aqueles que vieram a este mundo pelo mar
ou pelo gelo
não seremos mais que instantes solitários
de consciência.
Duraremos alguns anos na melhor das hipóteses,
e assim como fundaram cidades em seu tempo
e percorreram os rios criando mapas
com pêndulos,
assim como os índios construíram igrejas
com olhos de bois com as pedras
os índios sempre calaram com punhos em suas mãos.
Agora a consciência
a florista descarta as pétalas danificadas
para que a flor mostre seus encantos,
e os índios, com os olhos de bois com as pedras
semeando para o verão.
Esqueci os minutos
que esperei… e as ânsias
esqueci o cheiro que se instalava
em tua ausência
e como a fila para o cinema avançava e eu,
desejando com expectativa que uma sombra
atrás da multidão deixasse ver uma mecha de esperança.
Esqueci os minutos
quando cravavas as pupilas em meus olhos
para encontrar alguma mentirinha
branca e fingias desgostos
com o jogo desbordado pela alma.
Com o que sabem as flores do esquecimento
no lado do sótão estão crescendo
gerânios, violetas, margaridas
com que brincávamos
bem-me-quer, mal-me-quer
muito antes que na ravina
amanheça uma menina violada
muito antes dos desaparecidos
antes de tudo o que se grava na têmpora
para que continue pulsando esta pergunta de jogo
no tremor das veias
debaixo da pele
esta pulsação em debandada.
DIZER
Desarticula que arde a palavra
somente ela onde ela existe
em um mundo frequentado por tigres
mamíferos ferozes
bárbaros
bestas
o orbe de tristeza sustenta um roble
a névoa sobe fugaz
a fumaça
a cinza.
Voo desnecessário destroçado
planta submersa em opróbrio
apagada diluída
ofegante e esquecida
a palavra para onde tenha ido
onde ela exista
e somente ela
um germe de batimento inato
esporádico ventre de terra e barro.
Porque ela arranca um rumor cativo
e o arremessa
o tranca
lhe mente
acende a pradaria e gasta um balanço
se desdobra até o último centavo
e diminui
repreende
mia
e aflora.
A poesia foi perseguida
capturada
morta e enterrada
ressuscitou ao terceiro dia
como tudo que ressuscita
quando é perseguido
morto e enterrado
e canta só ela onde ela exista
ramo este sobre o merlo pousado
não importa nem resta dizê-lo
tronco que ilumina os cupins
nos vendavais que surgem da gesta.
Poesia matéria primitiva
substância da heresia
me toma
me despe
me desterra
se contorce no mesmo chão
sujo da cozinha
se inventa
me rapta
me perde me sonha
assim todos os dias
com um sabor amargo na boca
e os caminhos que ela percorre
eu beijo
bebo delírio
mas ela pensa outra coisa
e retorna com sua carapaça de caranguejo
a manhã absorta
com a constância da tinta
me orgulho de tanto papel na cesta
que me liberto do tempo
corro
fujo
e salto.
Ela me olha de longe e
me crônica
me tempera
me marginaliza
ela e só onde ela exista
uma janela embala o melro
e o cobre com as palmas de arado
depois me silencia
me indómita
me cheira
me lágrima
me espuma
e me beija.
OS OUTROS SÃO IMORTAIS
Os outros são imortais
eu faleço com a suavidade do outono
e o ar que respiro
é um ar de relva muda
de criança ausente
eu coloco a chuva que quero
e a deixo lá
em suspenso como um livro
sobre a mesa de cabeceira
Se não sinto tua respiração
tudo se resume a molhar e expor ao sol
posso morrer de
antigo
de ensolarado
de horizonte
de ausente
de venturoso
de beijos
de montanha
de neve
de violeta
e de gerânio
E todos os outros são imortais
guardam tesouros imemoriais
um baile absorto
uma doçura de tudo
uma pintura pálida e descolorida
um dançarino que invade
uma sala de origens
a verdadeira felicidade
Mas eu estou cheio de artistas melancólicos
de poltronas silenciosas
de corredores escuros
de infância e terra
de meios-dias distantes
e nada é como antes
todos cresceram
e já,
– outro já a beijou –