Curadoria e tradução de Floriano Martins
María Meleck Vivanco nasceu no Valle de San Javier (Córdoba, Argentina) em 1921. São pouquíssimos os poetas contemporâneos desse país − ou de qualquer outro − que tenham desenvolvido uma obra tão pessoal e genuína como, ao mesmo tempo, tão longe do grande público e dos cânones oficiais de letras em castelhano.
Nos poucos textos sobre sua obra, ela costuma ser ligada ao primeiro grupo argentino de poetas inspirados no surrealismo, que Aldo Pellegrini reuniu em sua Antologia da Poesia Surrealista em meados do século XX. Na perspectiva hispano-americana, estes autores foram pioneiros na adesão ao movimento originado na França, destacando-se nomes como Francisco Madariaga, Juan Antonio Vasco, Enrique Molina, Oliverio Girondo, Julio Llinás, Carlos Latorre ou Juan José Ceselli. María Meleck Vivanco teve seu lugar dentro desse círculo, embora, talvez devido à personalidade independente da autora, sua poesia não tenha recebido a difusão de alguns de seus companheiros.
Essa personalidade e fidelidade às próprias letras permaneceram intactas até o final, ocorrido em 8 de novembro de 2010 em Portezuelo (Maldonado, Uruguai), onde a escritora havia se refugiado em seus últimos anos.
HÉCTOR ROSALES
ARCOS DO ENTARDECER
A hora está aqui
Cálida e cega Imperturbável e lúcida
Seu ossinho úmido de cão fiel
cabe agora na corola de uma mão
Girassóis ardidos regressam à escória do oceano
Nuvens em cíngulos acompanham sua rubra cabeleira
A hora profética danificou a memória do sonho
Beija mortalmente nossos olhos
Vulnera nossa pele desconhecida
Menina-luz órfã que se deleita com antigas moedas
elevando conjurações em um ar que embriaga
como a respiração dos pinheiros
O amor se ergue no mastro do verão
Sobe e vibra Frutífera e sucumbe
Revela seu furor e se cala
Deixa mortalhas de éter aceso
sob os arcos do entardecer
E a grande Verdade eclode
Engendra nas veias sua prole silenciosa
e então estala em fetos
sacudindo os mananciais da origem
PRIMAZIA DO FAUNO
Peixe e betume para as rodas do carro do Faraó Elas apagarão os clamores do Egito
Nesse dilema que sobressaltam as fúrias, vale o ajuste perfeito da antiga doçura
Sinto-me polir como de morte em um metal fundido entre muitas raízes Ressonância de estrondo possuem as vozes que me nomeiam E o desconhecido é um embrião mutilado em um ovo de bruxas
Compassos de entusiasmo bastam para determinar o bulício do vento Colinas reverentes na brilhante primazia do fauno
A cruz errática As demolições O passageiro da Criação dirigindo em ziguezague as aves de rapina
O dedo de Satanás resolveu o oráculo Às minhas costas treme a intensidade de seus nus Beijo a beijo a crueldade multiplica os incestuosos arcanjos
Para atemorizar o prazer? Para ocultar com lenços enlutados sua delicada impudicícia?
Uivemos como malditos porcos com as patas para cima O vento sudeste avança Minha língua seduz as escuridões por entre sóis eróticos
PORTADOR DE MEDOS
Peço ordem à névoa
Não me conformo com meu ânimo Seus lábios desertos acariciam a colher de café, e não tremem Seu doce lacrimal desvanece em um rosto distante parecido com um naufrágio
Já ardem no forno os segredos sensuais do pólen áspero das prímulas E o rancor envenena a sementeira
À distância, um gesto indecifrável gira milhares de vezes sobre o eixo do tempo Até gastar sua própria seiva, até polir o mármore de seus olhos
Uma metade arrasta folhas molhadas com chuvas de saliva que afogam as namoradas do festim desnudas ao redor de um arbusto E o mealheiro natal de recordações, com o sol tresnoitado da morte, é a minha morte presumível
A aridez do deserto que vai se apagar em um sonho apertado, tem cílios falsos de portador de medos
Diante do mar agitado de uma palavra virgem
MINHA MÃE ME CONTOU…
Minha mãe me contou que as cartas amadas se reduzem a um grito A uma lástima da alma, sob uma crosta de tormentos Que se juntam por sete, os doridos do coração Que quando um pássaro bica o sangue, os dragões azuis mudam de pele Que debaixo do mundo existe uma boneca rota que aos poucos te marca os ossos Que de perfil te apaga o equilíbrio Que te cambaleia sardenta, com frio encantamento E te deixa a boca fugaz, aparecida,
como uma traficante sem ofício
COMEMORAÇÕES
Apago meus rastros, para que a morte caminhe sobre a água
E o que houve com o abandono? Com as inocentes amendoeiras? Com os pãezinhos, em mesas de ruptura e celebração?
Há lufadas com astros encontrados e mãos sem memória Taças de vaticínio, com o chamariz de um rosto Rosto eleito para iluminar o universo
Tensos violinos galopam a cidade do perdão Respiram musgo cinza, como uma centelha à deriva Como boca de beijos desbastados, marcados com o óxido da intempérie ou do fastio
Porque há sinos fundidos na fumaça – surdos sob as estrelas – com veias de lacre e invisíveis pulsações
Replicantes ainda, no cálido e voraz cemitério da retama