5 Poemas de Alejandra Pizarnik (Argentina, 1936-1972)

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Alejandra Pizarnik é poeta essencialista: vale-se de teimosas e fugidias ferramentas para a construção da solidez impossível diante da morte. Seu desígnio de tecer com o tormento da ausência é um mote para a articulação de símbolos obsessivos materializados em noite, pássaro, coração, vento, espelho, flor e outros mais que indiciam uma penosa experiência de busca – limite que na lírica moderna se dá como afirmação de uma consciência poética. À margem de experiências declaradas no âmbito sensível da vida cotidiana (que possibilitou a um Bandeira colocar a poesia em nosso colo), a matéria da poeta é a experiência mais viva possível do símbolo como símbolo, na rarefação do estado de espírito que Drummond conheceu e atribuiu a quem vive sua morte (“Nudez”). 

ALCIDES VILLAÇA


A QUEDA

Música jamais ouvida,
amada em antigas festas.
Nunca mais voltarei a abraçar
o que virá depois do fim?

Porém esta inocente necessidade de viajar
entre preces e uivos.
Eu não sei. Não sei senão do rosto
de cem olhos de pedra
que chora junto ao silêncio
e que me espera.

Jardim percorrido em lágrimas,
habitantes que beijei
quando minha morte ainda não havia nascido.
No vento sagrado
teciam meu destino.


ANÉIS DE CINZA

A Cristina Campo

São minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os tristemente amordaçados na aurora,
os vestidos de pássaro desolado na chuva.

Há, na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre,
uma tribo de palavras mutiladas
busca asilo em minha garganta,
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio.


FRAGMENTOS PARA DOMINAR O SILÊNCIO

I.

As forças da linguagem são as damas solitárias, desoladas, que cantam através de minha voz que escuto à distância. E longe, na negra areia, jaz uma criança densa de música ancestral. Onde a verdadeira morte? Quis iluminar-me à luz de minha falta de luz. Os ramos morrem na memória. A jacente aninha em mim com sua máscara de loba. A que não pode mais e implorou chamas e ardemos.

II.

Quando voa o telhado da casa da linguagem e as palavras não a protegem, eu falo.

As damas de vermelho se extraviaram dentro de suas máscaras embora regressem para soluçar entre flores.

Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados selar as rachaduras do silêncio. Escuto teu dulcíssimo pranto florescer meu silêncio triste.

III.

A morte restituiu ao silêncio seu prestígio enfeitiçante. E eu não direi meu poema e eu hei de dizê-lo. Mesmo que o poema (aqui, agora) não tenha sentido, não tenha destino.


LAMENTOS

I.

A linguagem silenciosa engendra fogo. O silêncio se propaga, o silêncio é fogo.

Era preciso dizer acerca da água o simplesmente apenas nomeá-la, de modo a atrair a palavra água para que apague as chamas de silêncio.

Porque não cantou, sua sombra canta. Onde uma vez seus olhos enfeitiçaram minha infância, o silêncio incandescente gira como um sol.

No coração da palavra o alcançaram; e eu não posso narrar o espaço ausente e azul criado por seus olhos.

II.

Com uma esponja úmida de chuva triste apagaram o ramo de lilás desenhado em seu cérebro.

O signo de seu estar é a enlutada escritura das mensagens que envia a si mesma. Ela se prova em sua nova linguagem e indaga o peso do morto na balança de seu coração.

III.

E o signo de seu estar cria o coração da noite.

Aprisionada: alguma vez esquecerão as culpas, aparentarão os vivos e os mortos.

Aprisionada: não soubeste prever que seu final iria ser a gruta para onde iam os maus nas histórias infantis.

Aprisionada: deixa que se cante como se pode e se quer. Até que na merecida noite seja peneirada a brusca desocultada. Por excesso de sofrimento excesso de noite e de silêncio.

IV.

As metáforas de asfixia se despojam do sudário, o poema. O terror é nomeado com o modelo diante, para que não equivoque.

V.

E eu sozinha com minhas vozes, e tu tanto estás do outro lado que te confundo comigo.


NESTA NOITE, NESTE MUNDO

A Martha Isabel Moia

nesta noite neste mundo
as palavras do sonho da infância da morte
nunca é isso o que alguém quer dizer
a língua natal castra
a língua é um órgão de conhecimento
do fracasso de todo poema
castrado por sua própria língua
que é o órgão da re-criação
do re-conhecimento
porém não o da ressurreição
de algo à maneira de negação
de meu horizonte de maldoror com seu cão
e nada é promessa
entre o dizível
que equivale a mentir
(tudo o que se pode dizer é mentira)
o resto é silêncio
só que o silêncio não existe

não
as palavras
não fazem o amor
fazem a ausência
se digo água, beberei?
se digo pão, comerei?
nesta noite neste mundo
extraordinário silêncio o desta noite
o que se passa com a alma é que não se vê
o que se passa com a mente é que não se vê
o que se passa com o espírito é que não se vê.
de onde vem essa conspiração de invisibilidades?
nenhuma palavra é visível
sombras
recintos viscosos onde se oculta
a pedra da loucura
corredores negros
eu os percorri todos
oh fica um pouco mais entre nós!

minha pessoa está ferida
minha primeira pessoa do singular

escrevo como alguém com uma faca erguida na escuridão
escrevo como estou dizendo
a sinceridade absoluta continuaria sendo
o impossível
oh fica um pouco mais entre nós!

as deteriorações das palavras
desabitando o espaço da linguagem
o conhecimento entre as pernas
o que fizeste com o dom do sexo?
oh meus mortos
eu os comi me engasguei
não posso mais de não poder mais

palavras embuçadas
tudo desliza
até a negra liquefação
e o cão de maldoror
nesta noite neste mundo
onde tudo é possível
exceto
o poema

falo
sabendo que não se trata disso
sempre não se trata disso
oh ajuda-me a escrever o poema mais prescindível
o que não sirva nem para
ser inservível
ajuda-me a escrever palavras
nesta noite neste mundo

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