Álbum de Crianças com Avó – Poema de Susana Reyes (El Salvador, 1971)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A poesia de Susana escrita para tornar-se voz, olhar, instante. Poema para nomear a ausência, a infância, o corpo que se faz verso em seu louvor histriônico. Poema para unir sofrimento sem lágrimas. As palavras, os sonhos, o verso que resolve um ponto essencial entre o sonho, a quimera e a realidade. A estrofe que o incentiva a permanecer naquelas imagens de seu próprio mundo, feitas sob medida para um sonho de viver e uma vida para sonhar. Um mundo que não é concebido de outra forma, mas através da poesia.

Convidados, portanto, a ler estes versos da Susana. Visto que a leitura é, como diz Victoria Fernández (2001), uma forma de passar o tempo (…), não para esquivar-se da vida ou evitá-la, mas para saber de que é feito o tempo, além do que, segundo acredito, também é a única maneira de nos salvar do tédio das horas, entrando no delicioso histrionismo das metáforas do abraço, no retorno e nesses versos simples desta poesia latino-americana; assumindo o instante do sorriso que o poema no espelho nos oferece. Sorriso que nos reflete com um beijo na memória daqueles que dançam a sua existência em outros pontos cardeais, mas que se encontram, momento após momento, nas nossas emocionantes visões do reencontro…

Poeta, editora, atriz, professora. Trabalhou como professora de línguas e literatura em várias universidades e participou em programas de formação literária para jovens e professores. Dirige a Índole Editores e preside a Fundação Claribel Alegría. Ele ministra oficinas de criação literária para jovens e adultos. Pertence ao grupo literário de mulheres Poesía y Más… Publicou: Los solitarios amamos las ciudades, Postales urbanas y Vitrales e Historia de los espejos.

LEONARDO FABIO MARÍN


ÁLBUM DE CRIANÇAS COM AVÓ
(Fragmentos)

Restam apenas as fotografias
Uma aventura de sal e o berço de tua boca

Sob o anjo um sonho postergado
uma mão que não foi
e o abismo feito de silêncio

—•—

Recolhi os postais
as fotos de criança
todas em um quebra-cabeças
de sangue e ladrilho

reinventei uma cidade
a partir de tiras e lágrimas
ruas empedradas, esquinas buliçosas

Tento seguir aqui
acaricio as fotos a lembrança
reconstruo

—•—

A janela
olha a janela
detrás dela aquele trem estacionado
aquele trem de osso e vime
a claridade de outubro
e teu rosto na penumbra

—•—

As cartas sob a raiz da árvore
a infância escrita no inverno

As notícias eram escassas
sonhos de papel em um inventado anonimato
sementes de tinta e terra nas mãos inquietas

—•—

Um cão negro cruza a rua
A cidade e seus sons
se esgueiram sob meu peito

O cão ladra e em sua linguagem
conversa com as minhas humilhações

E te recordo criança
em uma cidade dizimada pelo tempo
em uma cidade que pertence a teu esquecimento
que de noite sonhou com luzes e festas
que não soube contar os teus passos
de cores brilhantes e gotas de chuva
de casuarinas e sarjetas rompidas

Uma cidade de aves cantarolando
uma cidade de motores de corrida
com meninas em bicicleta e refrigerantes
com cães e meninos de pó e ruído

—•—

Detrás da menina na foto
dói a paisagem de infância
um rio corre
e cresce em noite de inverno

A avó se desvela
acariciando com sua mão
o ruído que avança

deve haver temido as pontes caídas

sabe calar
quando o coração range
e balança em um pranto atávico sobre ela

Na tarde solitária, a menina caminha nessa paisagem sépia.
Nenhuma rua disse nada de seu nome
Nenhuma rua reconhecia a si mesma

Dentro dela, são cozinhadas a pressa
os tetos marrons os becos anônimos
A cidade observa
conhece o vazio e a dor do perdido

Aqui está a primeira pedra
… talvez em uma foto que imagina de família
e surge Na porta de três gerações esquecidas

—•—

Vinhas com outubro nos lábios
com o coração feito abóbada
com o tropeço dos dias.
Sentavas como um cão
que espera o dono ausente
a quem ouve em sonhos chama-lo na planície
Compartilhavas a mesa
com o gesto dos meninos famintos
com a angústia do vagabundo
Choravas como chora o mar na madrugada
Te acostumaste a desprender uma lua
(que te mata a cada noite)
porque te acostumaste com a sua dor
com um incômodo resplendor nas entranhas
com a sua forma de amar e acomodar-se
e assim te sentes forte
porque és capaz de tragar luz e não chorar.

—•—

Tentei esmagar com a rede dos sonhos
aquela casa que construías a cada noite
ali te sentavas no amplo corredor

mais adiante
um lençol de nuvens e um vulcão
o vale de cobre era apenas um prolongamento do sonho
a espuma das fábricas
a neve insólita dessa latitude
teu cansado coração
uma lembrança solitária da infância em um país distante
minha loucura de te ver no terraço
o cheiro da tarde de inverno

tudo isto é tua casa, a única,
a que guardo neste desordenado hangar que palpita.

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