3 Poemas de Angelamaría Dávila (Porto Rico, 1944-2003)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Angelamaría Dávila (Porto Rico, 1944-2003). Poeta e artista visual que explorou temas de amor, relacionamentos e feminilidade. Escreveu poemas em seu espanhol natal antes de frequentar a Universidade de Porto Rico na década de 1960 e fez parte da Generación del 60, um grupo proeminente e revolucionário de poetas porto-riquenhos, onde contribuiu para a revista literária Guajana. Colaborou com o poeta e marido José María Lima. Angelamaría foi também cantora que se apresentou em cabarés e incluiu suas ilustrações ao lado de seus poemas. Ela morreu de complicações pulmonares causadas pelo mal de Alzheimer. Suas influências incluíram Julia de Burgos, Clara Lair, Sylvia Rexach e Sor Juana Inés de la Cruz. O amor é uma ideia central no corpo da obra de Dávila como prova do seu interesse e envolvimento com o lugar do amor na experiência humana. Poesia publicada: Homenaje al ombligo (1966, com José Maria Lima), Animal fiero y tierno (1981), e la querencia (2006).

*****

Um verso do poema “acabo de morir”, de Angelamaría Dávila, aponta para uma linha que percorre a grande parte da obra do poeta: “y que me arda la sal de tanto tiempo /prendida y afuegada”. Pertence a um poema de Homenaje al ombligo, primeiro livro da poeta, que publicou com José María Lima, em 1966, em edição pequena e voltou a ser publicado mais recentemente pela Folium (San Juan 2016). Toda a poesia de Angelamaría é acesa, em uma das aceitações da palavra (encerra o fogo ou a luz), tanto a paixão e a emoção são importantes no registro do discurso poético que maneja e a luz é metáfora ou referente recorrente em seus livros. Também está acesa no sentido de agarrada ou ancorada a todo o entorno que cria, agarrada ao imediatismo daquela realidade que escuta e que faz parte da voz ou das vozes que circulam em seus livros. Além disso, cada poema é interpretado pelos outros do conjunto, criando assim uma série de significados.

[…]

Enquanto a sua é uma poesia transmitida com frequência à cotidianidade, há sempre um ambiente que envolve assuntos, ações e emoções, seja na história da espécie, seja na proposta de um mundo coletivo que é guiado pela justiça, seja em referências culturais mais amplas, enlaçadas à materialidade da língua e do corpo.

IVETTE LÓPEZ JIMÉNEZ


PRESTES A SER DOMESTICADA

prestes a ser domesticada fervendo sob as panelas
ou esperando sobre a mesa passa despercebida. na clareza
do dia justo ao pé da noite limpa remelas, cuida dos asseios,
penteia-se rápido e se despede com um beijo. colada ao café escorre
pelo ar enquanto desliza imperceptível molhando as paredes.
mescla, combina os sabores milenários, ordena-os se mexendo.
virando-se prova repetidamente a comida que borbulha em seu
caldeirão infinito. depois lava e limpa os cantos conjurando
os mundos invisíveis. clandestina, desce ao pátio arejando vozes
e índigo; sacode, pica e estende ao sol papéis gigantescos
cloro branco. sobe se banha, canta. mais tarde arruma as camas
instalando-se inevitável, noturna por força compete com a noite
se despe tentando entre a escuridão e o prazer. sub-reptícia e
dissimulada avança e vence
sempre subversiva. aqui (assim) a poesia sobrevive.


DEIXEM-ME SÓ COM MINHAS COISAS

Deixem-me só com minhas coisas
deixem-me sozinha no banheiro com minhas pragas
minhas secreções, minhas intimidades. deixem-me…
sozinha no meu quarto, sem dormir
alucinada e cheia de feridas, ou
queimando ou uivando.
deixem-me chorar quando-bem-queira
enquanto esfrego ou descongelo o freezer
que raiva
experimentando o feijão
Deixem-me virar o arroz desesperadamente.
–desculpem-me do beijo por um tempo–
AGORA DEIXEM-ME
insolente e amaldiçoada; em viagens
para me salvar ou me ferrar; assediada,
assediada pelo círculo de marcas de carimbo na pele.
me deixem na rua pensando no que eu quiser
mordendo o ar. não me segurem agora
vou pegar El Monte.
quero cuspir na grama mais tenra,
espantar borboletas amarelas e dar um tapa em margaridas
estalar brotos, desalojar botões.
trago comigo minha espátula de osso
para vomitar aos pedaços nos chineses e na água.
não me cumprimentem, me deixem assim: fedorenta
espinhosa com a rosa, ajoelhada
nesta pele fedorenta de lama.
não falem comigo, não olhem para mim; pelo menos eu não grito
me deixem em paz, caramba
me deixem com minhas pragas
DEIXEM QUE EU ME FODA
—que isso aconteça—


O LONGO DIA DA FOME

Um dia terremoto
um dia de distância
um dia colher enferrujada
um grande palhaço triste mudando sua tristeza
em uma frigideira enorme
porém não interminável.
há poucos minutos
acumulados em cada canto
que este grande dia osso
dia de pelos, buraco silenciado,
dia inchado e palavra abolida,
dia humano e triste
que apesar da grama
e do amor flagrante
transita riso e seco
magro como o fim da fome saciada.
há muitos minutos
–ignorados
pela continuidade da água e da vela
acumulados
como formigas remotas em axilas ofegantes
ancorados na testa da ruga –
que os pães alegres se entristecem
com as mãos ganhas com o suor da terra.
este grande dia sempre,
aprisionador aprisionado
com seu fim marcado com um nunca futuro
quando todos os dentes finalmente serão usados;
marcado em seu trajeto de caracol voraz
pela pomba esfaqueada
e o tigre esfaqueado
e o homem e a pomba
e a terra e o pão esfaqueados;
para um final redondo e expandido
para um dia palavra com flores nos acentos
dia de suor distinto e corrigido,
colher brilhante,
asa correta e terra repousada.

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