4 Poemas de Efraín Jara Idrovo (Equador, 1926-2018)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils

Efraín Jara Idrovo (Cuenca, 1926 – 2018) foi um poeta, ensaísta e professor universitário equatoriano. Em 1999, ele foi agraciado com o Prêmio Nacional Eugenio Espejo por sua obra completa. Foi diretor da revista El Guacamayo e la Serpiente na Casa de la Cultura Ecuatoriana, Núcleo del Azuay. Vencedor do Ismael Pérez Pazmiño em 1969. Entre suas obras, destacam-se os livros: El mundo de las evidencias (1980), In memoriam (1980), Alguien dispone de su muerte (1988), De lo superficial a lo profundo (1992), Los rostros de Eros (1997), Lírica ecuatoriana contemporánea (1979), Poesía viva del Ecuador (1990), La palabra perdurable (1991). Maria Augusta Vintimilla, em um livro fundamental sobre a poética de Efraín, observa que sua escrita começou por volta de meados dos anos quarenta, inserida em uma tradição da poesia equatoriana que tem suas raízes no modernismo, no pós-modernismo e nas vanguardas, para depois se instalar no movimento poético hispano-americano contemporâneo. […] No entanto, para a tradição literária equatoriana e para a escrita poética de Efraín Jara, a presença turbulenta e renovadora do vanguardismo já estava firmemente estabelecida, com todas as suas quebras e rupturas. […] Da herança vanguardista derivam alguns traços da poesia de Jara que marcam o ponto de ruptura com a poética e a retórica de seu primeiro ciclo: experimentalismo, verso livre, métrica irregular, desarticulação da sintaxe, formação de palavras contrárias à estrutura monológica da língua, artifícios tipográficos e disposição versal na página, gerando uma espacialidade do poema que enfatiza seu caráter de escrita. Junto com eles, há uma atitude lúdica e irônica em relação ao mundo e ao próprio fazer poético, metáforas inusitadas, exploração das falas que foram mantidas segregadas da linguagem literária: coloquialismo, registros conversacionais, cadências próximas à prosa e à oralidade. Em uma conversa com Cecilia Mafla Bustamente em 2012, o poeta lembra: Eu acreditava e ainda acredito que o ser humano é o único ser que não tem sua identidade ontológica completa. Então, precisa se tornar ser através do fazer. Do meu ponto de vista, a poesia é a celebração da liberdade precisamente porque não é que o destino seja externo a nós; nós construímos nosso destino por sermos livres, precisamente. Somos o único animal livre, com consciência. Então, filosoficamente, primeiro vem a existência e depois a consciência. A existência cria a consciência.


CONDIÇÃO AMARGA

O mar está ali.
A água por si só é evidente:
elástica e compacta,
deixa-se estar, indiferente, em seu volume.
O cavalo está ali.
Presença indelével!
O bosque treme em seus olhos,
quando cheira a égua…

O que acontece contigo?
Apenas minguas em vez de crescer,
como um rio,
cujo caudal escasso,
o fará definhar nas areias.

Acreditas fixar o esplêndido
diadema dos astros
e já é outro quem persiste na imagem:
aquele que, sim é, não é o mesmo,
aquele que ao brilhar se extingue
para recomeçar.


ULISSES E AS SEREIAS

Para onde navegas,
Ulisses, teu trirreme
com seus remos de sangue e velas de delírio?

Vais ao centro de tua alma?
Buscas amor? Certeza?
O vento nasce de ti e te conduz de volta a ti mesmo.

Navegando, vivendo,
o porto que te espera
é teu rosto perdido no dia em que partiste.

Fora de ti não há porto.
Tua jornada é um retorno.
A espuma da costa apenas se curva diante de ti.

Tu não olhas, Ulisses.
Quando olhas, surpreendes
tua solidão retornando à sua própria constância.

Formas vãs, reflexos:
ondas, rochas, gaivotas.
O mundo é o que te sobra e escapa pelos teus olhos.

Cobre teus ouvidos com cera!
As sereias te chamam.
Fora de ti não há cais, nem areia, nem evidência.

Faróis insidiosos
— matéria, sexo, tempo —
aceleram tua nave contra os recifes.

Mar adentro, alma adentro,
a grande fosforescência
de tua consciência engendra a luz do universo.

Quando, ao olhar as nuvens,
vires que não são nuvens,
mas tua alma que escapa, Ulisses, solta a âncora!…


SEXO

Esta salpicadora de relâmpago
ou estertor das mucosas da lava.
Este sal que molda os corais
e se vinga nos cascos dos navios.
Este século de pantera ou neblina,
alertando as brasas do sangue.
Este cerco animal com pés de sombra,
pisoteando as estrelas e as pétalas.
Esta papoula em chamas, espreitando
entre as tristes fissuras da carne.
Este rastro insidioso de frescor,
atrás do qual as corças vão para o abismo.
Esta razão da alegria; e, de repente,
gravitação da melancolia…
Esta respiração de tigre, inflamado
a maré de sóis do instinto.
Este cheiro visceral: cera de abelha
ou cardume queimando na praia.
Este outono nas veias. Esta pálpebra
feroz e ternamente vigilante.
Este fogo tenaz que nos sustenta,
ainda que já sejamos pó disperso.


O ALMOÇO DO SOLITÁRIO

preso na torrente da duração
assim quis te ver
velho e enferrujado amigo efraín
pedra confundida
entre o estrondo de pedras do desespero
tanta presunção de folhagens já envelhecidas
pela dourada lepra do outono
tremor tanto
tremor
estrondo
tantos redemoinhos de frustrações e sonhos
tanto ir e vir da consciência para o mundo
e por fim se perder
no labirinto de espelhos das palavras
há algo mais além de roer o osso do tempo
sob o silêncio das estrelas?
e se isso é tudo
como realmente é tudo
viva deslumbramento ofuscante do momento!
viva rastro do meteoro!
viva rosto curtido pelos rigores do relâmpago!
não de folhas arrancadas pela tempestade
mas de fria e obstinada paixão de usurário
por metais preciosos
são feitos o destino e a poesia
5vermelhodaexaltação
12pretodaasolidão
Ásdebrilhosdosexo
dadoscheiosdamorte
há o acaso
e não há o acaso
porque é necessário ter peregrinado muitos anos
pelas areias do esplendor
para que nossos passos antecipem o imprevisível
como o impulso do falcão ao ímpeto do vento
ah desditoso e comovedor animal
urinado pela necessidade e o costume
abandonado à errância como iceberg da indolência
do outro lado do outro lado do tempo
repetindo-se
repetindo-se
e repetindo-se
como um mecanismo defeituoso
como um impecável labutar de formigas
a fatalidade que sempre te surpreende adormecido
a palma cheia de rosas do amor
que já não reconheces
a corrente subterrânea de trovões da espécie
o focinho úmido
desajeitadamente certeiro
e feroz dos apetites
a pedra reverberante e sem peso da fome
o estômago como couro de boi endurecido entre estacas
o almoço
senhores
o aaalmmmoooçççooo!
sinistramente belo é
e indômito
quem colocou a clarear seus ossos
sob o deslumbre de facas da intempérie
que por nada ter
tudo aceita reconhecido
faz tudo incandescer junto ao seu coração
e tudo exalta
e transborda
mas ao peso dourado do fruto da plenitude
só chegamos pela renúncia
como à pedreira de raios da pureza
pelo augusto da nudez
cheiro de panos fermentados pela rotina
nunca mais!
armadilha dos deveres conjugais
não mais!
pântano das honras e genuflexões
jamais!
aniversários melancolicamente barulhentos
sábados devorados pela infecção das visitas
chaveiros engordados até a obesidade
e um cada vez mais próspero
e desamparado
mais compre um freezer
e ganhe uma batedeira grátis
sombriamente cada vez menos futuro e mais passado
os honrados pais da pátria
pais
podres
pátrias podres
assumem o poder em nome da democracia
a história se limpa com o infeliz do nixon
se estas férias pudesse ir ao mar!
ah poderoso cheiro a ejaculação
das praias na madrugada
ah vocabulário delirante de lírios da espuma
quinta-feira é jantar na casa dos fernández
não te esqueças de tomar a pílula anticoncepcional
no ar radicado da solidão
os pensamentos adquirem nitidez de espadas
ou de ossadas de cavalos no deserto
solidão luminosa
solidão estabelecida como semente no fruto
solidão em que tudo que passa pelo coração
se consome em chamas
como no hálito de topázios do estio
não aceitamos a trajetória da seta da duração
para nos lamentar
mas para nos maravilhar
encharcado pela chuva da purificação
vem o canto do pássaro
aparece entre as fendas do sal
o tremor soluçante das asas de cigarra dos brotos
teve que se arriscar descalço nas brasas
para ganhar a vida
para que o tempo decline sua raiva
nos ramos de sangue
e as palavras brilham como uma floresta de lâmpadas
olor vociferante de cebola
olor estridente de cebola
(com os olhos banhados em lágrimas
canta
solitário
canta!
a cebola
vai para a panela
tralalá
tralalá)

odor bravio de axila exasperada
odor petulante e ofensivo de excitação animal
planeta de agulhas e dentes de pimenta
limaduras áureas do cominho
doce aspereza de pelos pubianos do orégano
há no tomate a insolência das verrugas
irados dentes de roedor do alho
lágrimas de silenciosa resignação do azeite
deleite
azeite
lubrificante do apetite
como se uma árvore de gorjeios fosse despedaçada
crepita a dourada galáxia do refogado
zumbido de abelhas
trovão de berílio
crepitar de cardos secos nas têmporas do fogo
aromas e sons da vida!
cada sensação nos lança em uma nova onda
cada rajada de odor nega a morte
cada batida é um encontro e uma despedida
presente implacável
presente e ausente
presente já ausente
a pegada do meteoro do presente
pela sua própria condição de instantaneidade
apenas é eco
ou nostalgia
na realidade nada é
nada está
tudo se faz e desfaz
quando fomos marcados pelo dedo da impaciência?
quando nós
os fugazes
com a alma escorrendo confusão e escuridão
decidimos pela intrépida ocupação
de polidores diamantes?
ah turbilhão de formas
desencadeado por um oleiro demente
ah degraus escorregadios
e pérfidos da insanidade
mas o grito desesperado da perpetuação
mas a grande vontade de espelho das imagens
o deslumbrante império de sóis da beleza
não se é
torna-se o solitário
a obstinação da lente que concentra a luz
a polia que gira delirantemente sobre si mesma
a estrela suspensa
em pura fulguração no vazio
na penumbra de vinhas
do ventre da mãe
fomos macerados pela solidão
e pela incerteza
e desde então
sempre empunhando a espada como a dispersão
sempre nos modelando como uma ânfora preciosa
sempre vigiando nossa pequena porção de adversidade
o odor de animal suado da perseverança
ah infância
floresta nunca pisada
pela pata de elefante do tempo!
somente então
naquele então
no sonho de cordeiro entre as flores da inocência
inocência
indolência
sem dolência
da consciência
a pura leveza do ser
a frase nunca terminada do mar
a asa que se desloca sem agitar o ar
o olho que se contempla sem devorar o mundo
louvor à medula dos ossos da vaca
às túnicas de jade do repolho
às frieiras escuras das batatas
bem-vindo alho-poró vermiforme
suculento amargor dos nabos
tenras estalactites das cenouras
sopa de verduras do desolado!
pégaso quente que o transporta
à mais alta torre do arrebatamento
pague seus impostos em dia com 10% de desconto
francisco franco agoniza por 34 dias
-parece que os vermes entraram em greve!-
o time de futebol local lidera o campeonato
precisamos criar uma taxa sobre a água potável
para fornecer preservativos aos arcanjos
à merda!
caprinos
caprunos
canalhas

ainda meu eu é meu eu
pólen soprado nas florestas
rastro inquietante do cometa
garra inescrupulosa do falcão
estrondo de astros na garganta do vulcão
pedra que anima a corola de círculos de água
ainda meu eu é meu eu
e não cinzas estéreis espalhadas
no asfalto da terceira pessoa do plural
águafervenapanela
águafervenapanela
esta fome
estame de fogo da fome
enxame de borboletas da fome
manchas de leopardos da gordura flutuam sobre a sopa
é a hora dos raminhos de aipo
a hora dos ramos de salsa
verifique o sal e ajuste
-os solitários são tremendamente apegados
à ortodoxia inútil das receitas-
na realidade não se é
torna-se o solitário
a bandeira absorta em sua tempestade de pombas
a majestade arisca da vela do albatroz
a harpa caída no olho de estupor do furacão
porque alguém deve se alimentar de espinhos
para esculpir os cílios da rosa
alguém deve aceitar os terrores da aniquilação
para que o instante não desvaneça
como no colo das trevas
a espada lambida pelo relâmpago
ou o salto do peixe entre o tumulto das ondas
e agora a imaculada escarcha do arroz
da ordem febril
da câmara de larvas do cupinzeiro
os dentículos de leite do arroz
sua nitidez de lágrimas de perdiz
a neve sobre a qual se inflama como um sol
o ovo frito
o prodígio da carne na frigideira
assedio pelas constelações do óleo
eu era o animal
gremial
social
oficial
o cidadão tranquilo
na impessoalidade de suas pantufas
mas por trás destas feições
de índio melancólico e cortês
ouviam-se o rugido da fenda do terremoto
o assobio do vento no campo
o vapor ardente de cobra dos instintos
será a abundância daqueles que nos pertencem
a causa de nossa aflição?
ou talvez nossa ineptidão para olhar
a resplandecente ourivesaria do céu noturno
sem que as interrogações nos oprimam?
esqueça tudo isso!
aceite simplesmente que estamos aqui
que é um privilégio
e ventura
testemunhar a duração que não somos
sentando desesperadamente bêbados de amor
ao efêmero sobre nossos joelhos
panelas
bitucas
pratos sujos
corredores cheios de desesperança
nos dias tormentosos do solitário
os botões o abandonam sem se despedir
(com os olhos vermelhos de insônia
canta
solitário
canta!
os botões
são meus únicos
dobrões
tralalá
tralalá)
as ervilhas germinam
de tanto guardar um pouco para o dia seguinte
os limões fermentam
e as lembranças
por que fazer a cama
como é possível a existência de deus
se o homem está destinado a morrer?
cuecas e livros no chão
um se torna dois
e fala até pela braguilha
um se torna lascivo
cínico
terno
hostilmente autobiográfico
a dor é a arrogância da consciência
qual palerma?
qual pó nas cadeiras?
qual ressentimento do olho de polvo do desaparecimento?
o almoço está servido
sabes que não invejam sua camisa
mas a alegria
não invejam sua comida
mas a fome
não abominam sua pobreza
mas seu desespero
o grande júbilo de seu desespero
quando sangue e mundo competem
nos declives profundos de seu coração
ou remas em direção à vigília
com um ramo de palavras abrasadas pelo frenesi
salferido
solitário
solidário
coloque um concerto de bach no toca-fitas
e sentado à mesa exalte seus dons frugais
esta bela e brutal incoerência da vida.

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