4 Poemas de Leira Araújo (Equador, 1990)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Leira Araújo nasceu em Guayaquil, Equador, em 1990. É poeta, pesquisadora, atriz e dramaturga. Em 2014 ganhou o Primeiro Slam Poético da Esquirla Poética e a Menção Honrosa do Prêmio Desembarco Poético (Equador) com a coleção de poemas Caníbales. Em 2015 ganhou o VIII Prêmio Nacional de Poesia Ileana Espinel Cedeño (Equador) com Última noche en el país de los hoteles. Estabeleceu-se em Espanha em 2016. Atualmente é pesquisadora pré-doutoral contratada no Departamento de Literatura Espanhola da Universidade de Granada, onde realiza um estudo sobre poesia equatoriana, graças a financiamento concedido pela Junta de Andalucía. Seus poemas foram publicados em espanhol e inglês, e ela foi incluída em diversas antologias de poesia.


CÂMERA

Perpetuar
no momento do abraço
a letargia das portas se fechando.
Cheirar
como minhas mãos caem como folhas
graças às estações que te perseguem.
Não há mais felicidade absoluta
maior sinal do trágico
medo do futuro
feridas que não cicatrizam
a memória é aniquilada neste passado
que sofremos para não mudar o ritmo.
Altera
a tua boca mordendo a minha
teus dentes sendo cortados desde a raiz
para entregar-se
a mim, à minha saliva.
Para o meu medo de táxis vazios.
o meu ódio pela cidade mais triste do mundo
onde nasceste
onde nascemos
para nos vermos e nos atirarmos um no outro.
Assim como me vês, eu te vejo.


MORDIDAS

Há filhotes de tigre querendo morder as calçadas. Eu sou a rua. Não, sou uma avenida. Não, sou o semáforo que se estende por um pé desconhecido. Que não atravesses e deixes os cães levarem tua carne.

Esta não é minha cidade. Essa também não é minha boca. Essa voz não é a que eu conheço e está se olhando no espelho e contando de um a dez de um a dez como as brincadeiras malucas das crianças que começam a falar, mas ninguém quer ouvi-las, porque todo mundo esqueceu como é não se preocupar com a pensão, como tocar o umbigo com sinceridade.

Ele me beija e é um sonho seco. Nossas línguas são pedras no meio da rua. Os carros buzinam, tem água na esquina. Quero saber para onde irá essa corrente. Ele também quer. Não sei por que sei o que ele quer. De repente estou na cabeça dele, mas ainda estou na minha. Eu não sou uma deusa. Eu não sou o inferno. Eu não sou espaço. Eu sou a arraia de um oceano inexistente. As pedras serão atiradas contra os corpos, tocarão os sinos, invejarão as sombras projetadas pelas árvores tristes. Centenas de bocas sorriem com a chegada do apocalipse. Vejo eles se aglomerando nas esquinas, comendo pipoca enquanto esperam o filme final. Nos amamos. Devemos agora cantar Cumbayá. Devíamos nos beijar. Não deixe ninguém pensar que isso é pornografia. Que ninguém diga nada. Diga-lhes para calarem a boca. Droga, o que há de errado com eles. Parem de amar um ao outro. Parem de cheirar a milho caramelado. Deixem o mar vir e levá-los embora. Não vai demorar. Nos sonhos somos todos fazedores. Nos sonhos, ninguém teme o artigo EU, ninguém teme o ego, ninguém justifica a sua existência através de palavras.

O tigre novamente. Ele veio para se afogar. Novamente um tigre e milhares de filhotes de tigre. Como é terno morrer com seus dentinhos cravados em minha perna. Ele está me beijando. Há listras nas minhas costas. Pego um mar para ouvir o som das conchas. Eu ensino o tigre a respirar. Debaixo d’água. Está verde. E sorri. E sorri.


ANTIPOEMA

Lembro que estavas ali sorvendo o sal enquanto eu pedia. Não, eu gritava. Não, eu sonhava. Eu só quero que pares. A memória é uma pasta de dente que não quer sair do tubo. A areia entrou em nossos poros. E ficaste feliz porque mostrei felicidade barata. A felicidade de uma criança de 5 anos, disseste. Porque a felicidade é simples, disseste. E que não comeces a chorar porque eu me queimo e tudo que fazes é bolar de rir. Havia cadáveres na água. Cadáveres na terra. Esqueletos que já foram o material essencial para um barco impossível que querias construir. Com cinco centavos, com um entusiasmo que não se mede na bolsa. Me disseste que era triste, por isso me deixaste. Eu não senti nada. Mas chorei. Quando os corais partidos acabaram com os meus pés. E nós sorrimos. Porque eu estava feliz novamente. Porque eu senti.


CANIBAIS

Às vezes, ele corta a náusea que corre pelos pés, apagando a luz barata de um armário. Estão. Suas meias passam dolorosamente sem conseguir segurar os tornozelos do anão. Meu sujeito deformado é o demônio que Deus tirou da minha costela quando nasci.

Eu acreditava que pelo menos teria asas e ouro cobrindo minha testa, mas entre os quadros experimentei o pânico do aço cirúrgico negociando os pulmões de minha mãe com frascos e soros de cores aleatórias que abalaram sua infância. Aí ela gritou com a minha avó, eu gritei com a minha avó, minha irmã gritou com a minha avó, a tia gritou com a avó. A hipótese de que a avó era avó, mas era uma péssima mãe, teve que ser tornada pública. Fizemos. Nós a espedaçamos. Comemos suas perninhas e sua boca que estava presa no queixo pelos beijos infinitos de 96.

Nós, canibais, comemoramos aniversários e feriados.

Somos de centro-esquerda, mas pagamos pouco à doméstica.

E vivemos apontando pistolas de chumbinho um para o outro até cansar o pulso, então nos beijamos e sentamos para jantar.

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